quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023
ADEUS Amiga
OS SEM-ABRIGO
A TI FLORINDA - LAVADEIRA
Desde que me lembro, que sempre
em minha casa, como nas casas dos meus avós paternos e minha avó materna, se
repartia com os mais necessitados. Não havia reformas nos anos 50/60 do século
passado e por isso, as pessoas trabalhavam até serem muito velhinhas. A minha
avó Bárbara, apesar de não ter muito, repartia o pouco que tinha pelos mais
pobres. Lembro-me da lavadeira (não havia máquinas de lavar) ser uma mulher
muito idosa, que lavava a roupa no tanque do quintal. No Inverno, a água no
tanque criava uma camada de gelo, a que chamávamos “caramelo”, que tinha que se
partir para se chegar à água líquida. As mãos ficavam geladas, vermelhas e
tolhidas com o frio. Minha avó, que tinha sempre lume feito na chaminé, chamava
a ti Florinda e esta gelada de frio, sentava-se ao lume para se aquecer. Minha
avó dava-lhe uma tigela de café e pão com queijo, marmelada ou “ argolas” da massa
do pão; a ti Florinda bebia o café e comia e depois ia logo para o tanque lavar
a roupa. À hora do almoço, a minha avó chamava-a, ela sentava-se de novo ao
lume na chaminé e dava-lhe uma grande tigela de sopa quente, que ela comia regalada.
Era uma pessoa muito reconhecida com as atitudes da minha avó, e por isso,
quando a minha avó estava sozinha, ela ia fazer-lhe companhia, dizia-se “dar o
serão”, e voltavam a beber café com leite e pão com qualquer “ conduto”, e
assim, a ti Florinda ia para a sua pobre casa muito fria, de tecto de telha vã
e portas que deixavam entrar o ar gélido da noite, um pouco mais confortada.
Diariamente, aparecia a ti
Rosária Espanhol, velhinha e sem qualquer sustento. A minha avó dava-lhe uma
tigela de sopa, café e pão com o que houvesse. Era visita da casa só para
comer, ficava um pouco à conversa e depois ia para casa dela.
Ti Jacinto Pavão
O meu avô paterno tinha um monte, chama-se o Monte do Sesmanito.
Pegado ao monte havia uma casa pequena, com chaminé, onde se guardavam os
utensílios da lavoura e a fruta que era apanhada e guardada em cima de palha,
para durar todo o inverno. Apareceu em Casa Branca, um homem, que nós achávamos
já de meia-idade, mas provavelmente ainda era novo, hoje seria considerado “um
sem-abrigo” que era o ti Jacinto Pavão. Não trabalhava e bebia muito, dormia
onde calhava. Todos na aldeia o conheciam, pois ele não fazia mal a ninguém. Então,
os meus avós levaram-no para o monte, puseram uma cama de ferro nessa casa e
ele começou aí a viver. Fazia lume na chaminé para se aquecer e aí dormia.
Ajudava o meu avô nos trabalhos da horta, mas com pouca habilidade e com muita
preguiça, o meu avô estava sempre a chamá-lo à atenção. À hora das refeições, a
minha avó ia levar-lhe o pequeno- almoço, o almoço e o jantar, e a fruta comia
a que lhe apetecesse. Quando nós, crianças estávamos no monte, era um de nós a
ir levar o comer ao ti Jacinto Pavão. Não tínhamos medo dele, apesar do seu
aspecto maltrapilho e do cabelo e da barba sempre grandes. Ele tinha por nós
respeito e amizade. Quando o meu avô envelheceu e deixou de tratar do monte, o ti
Jacinto Pavão ficou sem sítio onde se abrigar.
O meu bisavô materno, que já tinha
falecido há muitos anos, tinha um pequeno monte numa courela, que distava de
Casa Branca, 1Km ou 1, 5km e o ti Jacinto Pavão começou a ir abrigar-se ali.
Pedia esmola de porta em porta e algumas vezes, o meu pai dava-lhe trabalhos
leves nos armazéns, como varrer, lavar ou regar as flores e pagava-lhe, logo
ele ia gastar esse dinheiro em vinho. Não conheci esse montinho, que servia
para guardar as alfaias agrícolas e pouco mais.
Um dia, o ti Jacinto Pavão
devia estar bêbado e com frio, fez um lume grande dentro do monte, e este
começou a arder. Sem ter ninguém, por perto para o ajudar, deixou arder o monte
todo, para grande desgosto da minha avó materna, dos meus tios e da minha mãe,
pois o meu bisavô, já velhinho apoiado num cajado, ia quase todos os dias a
essa courela buscar fruta e sobretudo figos, das poucas árvores que ainda
resistiam, ao calor do verão e ao frio do inverno, sem serem tratadas.
OH PATROA!
A minha tia materna viveu na
Moita. Então havia um sem-abrigo que ia ao 3º andar pedir esmola. Um dia, ela
perguntou-lhe se ele queria uma tigela de sopa quentinha, ao que ele respondeu,
muito prontamente, que sim.
Assim, duas vezes por semana,
ele entrava no prédio, subia até ao 3º
andar, batia à porta da minha tia e chamava: -“Oh patroa!” , “ oh patroa” e a
minha tia lá ia dar-lhe a tigela de sopa quentinha, que ele comia sentado nos
degraus da escada. Agradecia muito e dizia: “Até pr’a semana, patroa!”
A tigela e a colher eram sempre
as mesmas, estavam ao lado do lava-louças e nós já sabíamos que era a tigela do
“Barbas”, nome que nós lhe pusemos. Durante anos, ele foi ali comer, e ontem,
telefonei a minha tia para saber o nome deste sem-abrigo e a minha tia disse-me:
-“ Não sei! Vê - lá que nunca lhe perguntei como se chamava!...”
Quando foi morar para o
Barreiro, também começou a dar a sopa quentinha a um sem –abrigo, que lhe
chamava “-Senhora!”. Ela morava no 2º andar, ele entrava no prédio, batia-lhe à
porta, chamava “Senhora! Oh senhora” e lá vinha a minha tia dar-lhe a grande
tigela, que já tinha sido do outro sem –abrigo da Moita, cheia de sopa quentinha. Sentava-se,
nos degraus da escada, comia, ficava muito satisfeito, agradecia e dizia-lhe: -“,
Obrigada senhora! Então até para a semana!...”
Muito mais tinha para contar,
mas fico por aqui. Ainda hoje, tenho muito respeito pelos sem-abrigo e ajudo
sempre que me é oportuno.
USMM
Massamá 16 Fevereiro 2023
Zuzu Baleiro