quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

ADEUS Amiga

Soube há pouco tempo que tinhas morrido. Fiquei em choque, pois ainda nao tinhas idade para partir.
Na nossa amizade tivemos altos e baixos.  Houve alguns momentos em que sentíamos que não combinávamos e afastámo-nos. Um dia, fui a um concerto na Sé de Lisboa e à saída encontrámo-nos. Adorei ver-te. Disseste-me que o teu filho tinha falecido com uma overdose.  Fiquei tão chocada. Éramos duas mães sofridas. Eu com o coração destroçado pela morte súbita da minha filha Marta, tu ainda incrédula do choque que tinhas sofrido há pouco tempo.  
Recomeçámos a nossa amizade. Precisávamos uma da outra. Reatámos a nossa amizade,  telefonávamos com assiduidade .
Um dia, a casa bonita e boa que tinhas na Praça Pasteur por um descuido teu, deixaste um cigarro meio apagado que pegou fogo à casa. Ficaste sem nada. Tudo ardeu. Mais um choque terrível para ti. Não tinhas onde viver.  Foste para casa da nossa amiga Riso. Um tempo depois alugaste uma casa.
Moravas perto da Riso, eram vizinhas,  estavas contente.
Fizemos um workshop de 15 sessões, aos sábados e Domingos. Víamo-nos com frequência.  Dávamos-te boleia para Sintra.  Comprei-te um pijama com bonecos do Mikey e mais algumas peças de roupa pois tu tinhas preciso de tudo. Quando te telefonava dizias-me: " sabes o que tenho vestido? O pijama do Mikey,  pareço uma criança! " e riamo-nos as duas. Estavas contente e o workshop fez-nos bem e aproximou-nos muito. 
Contavas-me coisas da tua vida. Moravas na Penha de França e tinhas como vizinhas umas idosas que te adoravam. 
Não me tenho esquecido de ti. Partiste para sempre. Adeus minha amiga Maria Alexandre. 

OS SEM-ABRIGO

 

A TI FLORINDA - LAVADEIRA

Desde que me lembro, que sempre em minha casa, como nas casas dos meus avós paternos e minha avó materna, se repartia com os mais necessitados. Não havia reformas nos anos 50/60 do século passado e por isso, as pessoas trabalhavam até serem muito velhinhas. A minha avó Bárbara, apesar de não ter muito, repartia o pouco que tinha pelos mais pobres. Lembro-me da lavadeira (não havia máquinas de lavar) ser uma mulher muito idosa, que lavava a roupa no tanque do quintal. No Inverno, a água no tanque criava uma camada de gelo, a que chamávamos “caramelo”, que tinha que se partir para se chegar à água líquida. As mãos ficavam geladas, vermelhas e tolhidas com o frio. Minha avó, que tinha sempre lume feito na chaminé, chamava a ti Florinda e esta gelada de frio, sentava-se ao lume para se aquecer. Minha avó dava-lhe uma tigela de café e pão com queijo, marmelada ou “ argolas” da massa do pão; a ti Florinda bebia o café e comia e depois ia logo para o tanque lavar a roupa. À hora do almoço, a minha avó chamava-a, ela sentava-se de novo ao lume na chaminé e dava-lhe uma grande tigela de sopa quente, que ela comia regalada. Era uma pessoa muito reconhecida com as atitudes da minha avó, e por isso, quando a minha avó estava sozinha, ela ia fazer-lhe companhia, dizia-se “dar o serão”, e voltavam a beber café com leite e pão com qualquer “ conduto”, e assim, a ti Florinda ia para a sua pobre casa muito fria, de tecto de telha vã e portas que deixavam entrar o ar gélido da noite, um pouco mais confortada.

Diariamente, aparecia a ti Rosária Espanhol, velhinha e sem qualquer sustento. A minha avó dava-lhe uma tigela de sopa, café e pão com o que houvesse. Era visita da casa só para comer, ficava um pouco à conversa e depois ia para casa dela.

 

Ti Jacinto Pavão

O meu avô paterno tinha um monte, chama-se o Monte do Sesmanito. Pegado ao monte havia uma casa pequena, com chaminé, onde se guardavam os utensílios da lavoura e a fruta que era apanhada e guardada em cima de palha, para durar todo o inverno. Apareceu em Casa Branca, um homem, que nós achávamos já de meia-idade, mas provavelmente ainda era novo, hoje seria considerado “um sem-abrigo” que era o ti Jacinto Pavão. Não trabalhava e bebia muito, dormia onde calhava. Todos na aldeia o conheciam, pois ele não fazia mal a ninguém. Então, os meus avós levaram-no para o monte, puseram uma cama de ferro nessa casa e ele começou aí a viver. Fazia lume na chaminé para se aquecer e aí dormia. Ajudava o meu avô nos trabalhos da horta, mas com pouca habilidade e com muita preguiça, o meu avô estava sempre a chamá-lo à atenção. À hora das refeições, a minha avó ia levar-lhe o pequeno- almoço, o almoço e o jantar, e a fruta comia a que lhe apetecesse. Quando nós, crianças estávamos no monte, era um de nós a ir levar o comer ao ti Jacinto Pavão. Não tínhamos medo dele, apesar do seu aspecto maltrapilho e do cabelo e da barba sempre grandes. Ele tinha por nós respeito e amizade. Quando o meu avô envelheceu e deixou de tratar do monte, o ti Jacinto Pavão ficou sem sítio onde se abrigar.

O meu bisavô materno, que já tinha falecido há muitos anos, tinha um pequeno monte numa courela, que distava de Casa Branca, 1Km ou 1, 5km e o ti Jacinto Pavão começou a ir abrigar-se ali. Pedia esmola de porta em porta e algumas vezes, o meu pai dava-lhe trabalhos leves nos armazéns, como varrer, lavar ou regar as flores e pagava-lhe, logo ele ia gastar esse dinheiro em vinho. Não conheci esse montinho, que servia para guardar as alfaias agrícolas e pouco mais. 

Um dia, o ti Jacinto Pavão devia estar bêbado e com frio, fez um lume grande dentro do monte, e este começou a arder. Sem ter ninguém, por perto para o ajudar, deixou arder o monte todo, para grande desgosto da minha avó materna, dos meus tios e da minha mãe, pois o meu bisavô, já velhinho apoiado num cajado, ia quase todos os dias a essa courela buscar fruta e sobretudo figos, das poucas árvores que ainda resistiam, ao calor do verão e ao frio do inverno, sem serem tratadas.

 

OH PATROA!

A minha tia materna viveu na Moita. Então havia um sem-abrigo que ia ao 3º andar pedir esmola. Um dia, ela perguntou-lhe se ele queria uma tigela de sopa quentinha, ao que ele respondeu, muito prontamente, que sim.

Assim, duas vezes por semana, ele entrava no prédio, subia até  ao 3º andar, batia à porta da minha tia e chamava: -“Oh patroa!” , “ oh patroa” e a minha tia lá ia dar-lhe a tigela de sopa quentinha, que ele comia sentado nos degraus da escada. Agradecia muito e dizia: “Até pr’a semana, patroa!”

A tigela e a colher eram sempre as mesmas, estavam ao lado do lava-louças e nós já sabíamos que era a tigela do “Barbas”, nome que nós lhe pusemos. Durante anos, ele foi ali comer, e ontem, telefonei a minha tia para saber o nome deste sem-abrigo e a minha tia disse-me: -“ Não sei! Vê - lá que nunca lhe perguntei como se chamava!...”

Quando foi morar para o Barreiro, também começou a dar a sopa quentinha a um sem –abrigo, que lhe chamava “-Senhora!”. Ela morava no 2º andar, ele entrava no prédio, batia-lhe à porta, chamava “Senhora! Oh senhora” e lá vinha a minha tia dar-lhe a grande tigela, que já tinha sido do outro sem –abrigo  da Moita, cheia de sopa quentinha. Sentava-se, nos degraus da escada, comia, ficava muito satisfeito, agradecia e dizia-lhe: -“, Obrigada senhora! Então até para a semana!...”

 

Muito mais tinha para contar, mas fico por aqui. Ainda hoje, tenho muito respeito pelos sem-abrigo e ajudo sempre que me é oportuno.

 

 

USMM

Massamá 16 Fevereiro 2023

Zuzu Baleiro