segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Um bolo saído de um livro em viagem para oferecer aos Magos Reis.

Texto belíssimo da minha amiga Risoleta Pinto Pedro
Neste ainda dia dos Reis, em antecipação, um excerto de um livrinho que aí vem a caminho, faz sua viagem como qualquer mago, como qualquer rei. Ainda não terá revelado hoje seu título, mas apenas um dos subtítulos:

"UM APRECIADOR DE ROSAS, UM ADOLESCENTE, DUAS RAPARIGAS E UMA LOURA"

Pelo meio da ficção contém, a páginas tantas, a receita de um bolo que não sendo a mesma do bolo-rei, tem a mesma força simbólica deste. Cada ingrediente é um símbolo, a sua execução um ritual. Aqui fica como aperitivo para o livrinho que há-de chegar este ano, talvez nos primeiros meses, como agradecimento aos três Reis ou Magos que há tantos séculos repetem a viagem até ao menino, assim nos indicando o caminho em direção a nós:

" [...] resolvi fazer a festa do ouro da prata e da canela desse modo festejando, sem agredir sensibilidades mais laicas, o ouro, o incenso e a mirra.

Em homenagem ao tempo e à eternidade, fiz um bolo de ouro, prata, canela, incenso e mirra. Primeiro confeccionei o bolo e depois, enquanto cozia, escrevi a receita. Para nunca mais me sentir pássaro em cozinha de insone. Aqui fica a receita que não é estática mas estética e ética e como tal, aberta a aperfeiçoamentos:





NONA RECEITA


BOLO DE OURO, PRATA E CANELA


Grau de dificuldade: inclassificável


Pega-se na falta de tempo e arruma-se numa gaveta; não deixa crescer os bolos. Só então, munidos deste preciso levedante que é a ausência do que não existe, estamos preparados para o fazer. 


Começamos por procurar os ingredientes. Parte deles não encontramos nos supermercados. Começa-se por remexer em todas as antigas gavetas 


cuidado para não abrir a tal... 


e procuram-se as recordações douradas. As de prata recolhem-se da lua pela janela do quarto deixada entreaberta. Fecha-se a janela depois da meia-noite, após a recolha feita. Por causa das constipações e também para que não fujam. Quanto à canela, não é difícil encontrá-la no supermercado, mas convém intensificar-lhe o aroma à beira-rio, na memória das caravelas 


pedir, para isso, a ajuda de Cesário ..., 


ou junto de um misterioso barco aí ancorado e um dia descoberto com um ser muito amado.


Procura-se então um momento em que, na casa, os adolescentes estejam a dormir. 


São elementos muito perturbadores ao crescimento dos bolos, digo devoradores, sobretudo os mais cépticos, digo, gulosos


e começa-se por acender o Athanor, esse lento forno alquímico. À falta dele, serve o forno a gaz, que sempre o óptimo foi inimigo do possível, e não se podendo fazer a alquimia certa, faz-se, ao menos, a da humildade, o primeiro passo no caminho.


Depois de dispor ritualisticamente sobre a mesa os ingredientes, a saber:


- Farinha (cor de prata, obviamente)


- açúcar (dourado, claro)


- açúcar (prateado, pelos motivos que abaixo se explica)


- ovos (esse precioso sol semente)


- canela (dispensa apresentações, mas convém respirá-la bem, faz bem aos espirros, queria dizer, faz espirros, uma forma de lavar a alma)


- marmelada (de preferência de marmelos amadurecidos ao sol; se tiverem sido pintados por um pintor, melhor)


- chocapics da nestlé, passe a publicidade (porque é preciso saber sorrir)


- estrelitas, pelo mesmo motivo e também para trazer para dentro do nosso bolo uma fatia de céu.


- moedas douradas de chocolate das que há nas confeitarias.


- um ovo de chocolate envolto em prata desses que dávamos às crianças quando elas eram crianças e ainda não nos tinham ultrapassado em altura e continuamos a dar-lhes agora que pensam que já não são e já nos ultrapassam em altura.

Envolvem-se os ingredientes 


à excepção do açúcar prateado, das moedas douradas, do ovo de prata, dos chocapics, da marmelada e das estrelitas 


com muito amor e ao estilo e ao ritmo de cada um, e coloca-se a mistura dentro do Athanor 


mesmo disfarçado de forno vulgar.


Pelo meio, pode atender-se o telefone, mas só telefonemas de amor, palavras que não nos distanciem, nem nos descentrem.


Quando o coração o disser, volta-se ao fogo e salva-se o bolo, no momento certo.


Coloca-se sobre a pedra polida da bancada e com uma faca a que se segredou mil cuidados, corta-se ao meio, longitudinalmente e em movimentos circulares. Perfeitos. Convém ter trinado, digo treinado, antes, mas como se verá o trinado também não é descabido.
Separam-se as partes e sobre Malkuth 


para quem não saiba: a parte de baixo, o Mundo

coloca-se a marmelada, os chocapics e as estrelitas. Sopra-se lá para dentro um mantra de amor. Quem não souber, canta uma canção, que fica bem à mesma. Pode ser de embalar ou de exaltar. Depende do momento. Cobre-se com Kether 


para quem não souber, a coroa real, a parte de cima, aquela que todos já conhecemos antes de cairmos. Por isso construímos este bolo como uma escada de Jacob.


Chegou o momento de bater 


homeopaticamente 


umas claras que deixámos de parte com o açúcar prateado 


pormenor técnico: primeiro as claras; quando começar a desenhar-se pelo meio delas um castelo, junta-se o açúcar e continua-se, até o castelo estar bem firme sobre nuvens.


Cobre-se integralmente o bolo com o creme de nuvens prateadas 


o castelo dissolveu-se, de comoção e amor 


e finalmente decora-se perfeita e circularmente com as moedas de ouro, mais estrelas da nestlé e no centro, como qualquer semente, o ovo de prata.


Este bolo receita-se às pessoas de quem gostamos muito e também às outras.


Não se devora. Comunga-se.


As quantidades dependem muito do momento. Mais doçura, menos açúcar e vice-versa. A primeira hipótese é melhor mas a segunda também não é má, se não for frequente.


O Rubem gostou tanto da receita e do bolo, e talvez com saudades das Lições do Tonecas, sentiu estimulada a sua criatividade a ponto de iniciar uma redacção imaginando que era ainda menino ou que era a sua abandonada personagem e escrevia ..."
http://aluzdascasas.blogspot.pt/

Lua, romãs e outros mistérios

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015
Eu estava sentada numa sala de espectáculos (ultimamente ando bastante espectadora...) e ouvia, sem querer, a conversa atrás de mim. Era um casal e ela contava que uma amiga comum fizera uma reacção alérgica a algo, de tal modo que ficara a parecer "um bicho". Assim a descrevia. 

Repetia a comparação, mas a conversa não acabou aqui. A parte mais interessante veio a seguir.
 

- Então perguntei-lhe o que é que tinha comido, e ela respondeu-me que nada, para além do habitual. E eu: "Nada, nada?". E ela: "Bem, para além do habitual só comi uma romã enorme, lindíssima, que a minha sogra me trouxe!". Aí eu disse-lhe: "Ah! A tua sogra tentou envenenar-te com uma romã... ".

Neste ponto eu não quis ouvir mais e o Universo fez-me a vontade, porque o espectáculo recomeçou e eles tiveram de se calar. 

A história soou-me vagamente ao universo das narrativas tradicionais, começando pelo jardim do Éden com a maçã e continuando pela mitologia clássica e contos tradicionais da infância. A fruta tem sido um bocado maltratada na literatura, associada a bruxas, madrastas, sogras e mulheres malvadas em geral. Até dava para fazer uma tese em torno do tema: "A fruta na literatura da malvadez". Qualquer coisa assim, já alguém terá pensado nisso?
 

E eu pensei: Se é verdade o que dizem os cientistas, que existem numerosos ou mesmo infinitos mundos ou dimensões, acredito que exista um universo onde as maçãs e as romãs não surgem associadas a envenenamento e em que as sogras são vistas como pessoas simpáticas, gentis e fiáveis.
 

Acredito num mundo em que as hipóteses para a solução dos problemas são múltiplas, criativas e não estereotipadas.
 

Se bem percebi (o que não é pêra doce, e aqui entra também em cena a pêra...) pelas leituras que fiz sobre a mecânica quântica e o Bosão de Higgs, o universo é consciente e em permanente criação e nós, observadores do universo, criamos o universo em criação. Um paradoxo muito difícil de resolver e mesmo de compreender.
 

Mas se é assim e poderemos estar ao mesmo tempo, real e potencialmente, em inúmeros universos, podendo escolher aquele em que está a nossa consciência, eu escolherei aquele em que maçãs, romãs e sogras são inocentes e em que as amigas não se envenenam mutuamente com histórias venenosas a cheirar a enxofre.
 

Se isso puder acontecer neste mundo, fico contente, porque é um mundo muito belo. Até porque está a aproximar-se um ano que imagino, acredito e antevejo muito interessante, excitante e ímpar. Apesar do número par, o infinito oito. Mas se é infinito, não é par nem é ímpar, ou é tudo, e nesse mundo que eu escolho, a sintaxe não é a do "ou...ou", mas a do "e...e". Assim sendo, neste mundo que eu escolho criar como gosto, as maçãs são oferecidas ao ser amado e são conhecimento, as romãs são sementes e são amor, as sogras são as mães dos companheiros e das companheiras e são amorosas.
 

Quero estar nele. Entrar nele nesta passagem de quarta-feira*, como no dia em que nasci, com lua crescente, a tender para cheia, como quando nasci. Que este seja um renascimento para todos, sob a bênção da lua, esse ser doce entre maçã e romã.

( *Este texto foi escrito, e pela primeira vez publicado, numa quarta-feita em quarto-crescente, do velho para o novo ano)

Risoleta Pinto Pedro
http://www.unicepe.pt/