quarta-feira, 28 de setembro de 2011

O ASSOBIO...

O meu tio Zé Varela, que sempre admirei e com quem tive uma relação afectiva muito forte, se não tivesse partido,  estariamos hoje a festejar os seus 80 anos. Assim, como não lhe posso dar o beijo de parabéns que ele me retribuiria  com o seu sorriso aberto, meigo e feliz que sempre mostrava, vou escrever um texto que relata bem as memórias boas e singelas que guardo dele.
Quando eu tinha 11 anos, fui estudar para o Colégio de S. Joaquim em Estremoz (actual Escola 2,3 Sebastião da Gama), e fiquei hospedada na sua casa do Bairro de Santo António (hoje é neste bairro que fica o Supermercado Pingo Doce) , logo a casa ficava num extremo oposto ao colégio. A distância era enorme, e a minha pasta tinha sido mandada fazer ao sr. Contente do Cano, famoso pelas suas carteiras, pastas e afins, em couro verdadeiro e de duração ilimitada. Pesava "toneladas", pois o meu pai pedira  o couro mais durável que ele tivesse!. Não deixávamos os livros na escola, e assim, fazia quatro vezes, o caminho do Bairro de Santo António para a zona do Caldeiro. A pé, chovesse a potes, fizesse um frio de rachar, fizesse vento que tudo levava pelos ares, fizesse o 
calor abrasador de Estremoz, lá ia eu de pasta na mão cheia de livros, logo pelas 8 horas da manhã, voltava de novo com a pasta ao meio dia para almoçar. Depois de almoçar muito rapidamente, mudava os livros das disciplinas da manhã para as da tarde, e lá ia eu, pasta na mão a caminho do colégio onde ia ter aulas das 14horas até às 18h. Nos dias de Ginástica, hoje Educação Física ainda levava um saco de pano branco mandado fazer de propósito para transportar o uniforme de ginástica (saia calça. blusa de malha interloc branca, meias brancas e sapatilhas de ginástica brancas), por isso, nesse dia, a carga era mais pesada e o cansaço era ainda maior.
O percurso da escola para casa e da casa para a escola era e é muito comprido, a distância era interminável. Atravessávamos o Rossio e lá iamos nós,  eu, a Aurita, a Genhinha e a Luisa, felizes, bem dispostas, sem um queixume sobre a distância que tínhamos que percorrer 4 vezes ao dia!!!
Muito esporadicamente, o Sr Dias, pai da Geninha, que tinha uma loja de tecidos no Largo da República, dava-nos boleia, o que para nós era uma festa e um alívio, pois chegávamos mais depressa e menos cansadas.
A minha pasta era forte e feia. Eu não conseguia de maneira nenhuma ver-me livre dela. Então muitas vezes, mandava a pasta com toda a força, pelo pavimento de cimento do recreio, ela escorregava pelo chão e depois eu ia buscá-la ao outro extremo do pátio. Queria que ela se estragasse para 
poder ter uma mais leve... mas nunca o consegui!!! a pasta durou anos, e anos, e anos... sempre impecável... os cantos não estavam a desfazer-se, a mola para fechar continuava operacional e a pega da pasta firme, mas firme!!!! e a pasta acompanhou-me sempre, durante o meu percurso escolar do 1º ano do preparatório ao 5º ano do liceu.
À tarde, quando vinha do colégio, e passava no Rossio, encontrava-me muitas vezes, mesmo quase todos os dias, com o meu tio Zé Varela, que saía religiosamente às 18 horas do escritório , onde era escriturário e se dirigia para casa. Íamos juntos de regresso. Ele andava sempre um livro debaixo do braço, pois a leitura era um dos seus melhores passatempos. Tinha uma postura muito elegante, alto, magro, cabelo preto, com o seu fato muito bem tratado, as camisas brancas impecavelmente passadas pela tia Maria Emília, as calças com um vinco bem marcado. O meu tio interessava-se e queria saber como me tinha corrido o dia, e quando eu começava a falar sobre o meu dia na escola, ele começava a contar-me histórias do seu tempo de menino, de adolescente e naquele tempo (1961) de pai babado com a minha prima Maria Cristina, que era uma bébé adorável, muito bonita, rechonchudinha, risonha e sempre bem disposta.
Por vezes, quando íamos no Rossio, ouvíamos o assobio muito característico e muito pessoal do meu tio Jacinto, que nos tinha visto à distância e que queria juntar-se a nós. Aquele assobio era único. Pareciam rouxinóis a cantar nas árvores. Onde quer que um deles fizesse aquele assobio já sabiam que era um irmão a chamar o outro irmão.
Hoje, 52 anos passados, ainda recordo aquele assobio. Já não o posso ouvir, pois o tio Zé já cá não está e o tio Jacinto já não o pode chamar... mas, o assobio era inesquecível, bonito, harmonioso, alegre, direi mesmo que era uma pequena peça musical; era um assobio de grande cumplicidade, muito, mas mesmo muito pessoal, o que tornava esta forma de se comunicarem única.
Mais não escrevo, mas há tanta coisa a dizer deste querido tio que tanta saudade nos deixou...
Casa Branca, 28 de Setembro de 2011
zuzu

Quadras dedicadas ao Avô

Hoje fazes anos
Os parabéns te quero dar
Pois sei que aí no céu
Muito bem hás-de estar!

Pois aí no céu estás,
Um dia tinha de acontecer
Eu devia ter consciência
De que te ia perder!

Não podemos viver para sempre
E isso todos temos de saber,
Que um dia
a nós também nos há-de acontecer.

Avô eu adoro-te
E sabes que eu não te queria perder,
Pois eu pensei
Que para sempre te ia ter!

Raquel, 10 anos

o neto João Pedro

O avô é a estrelinha mais brilhante que está no céu sempre por cima da nossa casa.

O avô de noite é um anjo e de dia um diabrete, porque de dia os anjos não podem andar e por isso é um diabrete para que de dia possa tomar conta de nós.


João Pedro, 8 anos

A segunda-feira de Páscoa


Naquele dia de Páscoa, estava eu a passar uns dias com os avós no Alentejo, quando o avô decidiu ir fazer um piquenique com os amigos de Casa Branca, como é costume na segunda-feira de Páscoa. Este não foi um simples e rápido piquenique, mas sim um belo e interminável almoço, com direito a mantas, cadeiras, mesas, camas de rede e muita conversa e animação. Este dia foi bastante marcante para mim, uma vez que o tempo se revelava bastante assustador e o regresso a casa um tanto sobressaltado.
Após o almoço e no início da sesta para uns e da brincadeira para outros (para mim), começou o céu a enegrecer e o vento a levantar-se, sugerindo uma trovoada iminente. Rápido nos levantamos, arrumamos a trouxa e metemo-nos ao caminho. Contudo, o que não esperávamos era que o carro do João Manel, onde eu ia com a minha "recém melhor amiga" Susana, de tão baixo que era, tivesse dificuldade em atravessar um pequeno riacho que, com a chuvada que se apoderou, aumentou de caudal. Eu, com os meus 6 aninhos, estava amedrontada com receio de não chegar a casa. Lembro-me da Susana contar histórias para me entreter e de dizer para pôr a cabeça no colo dela para evitar ver a tempestade que tanto me inquietava. Atrás vinham os avós, e isso sim, era outro dos motivos da minha inquietação.

A caminho da Casa Branca recordo-me de um maluco, coitado, que andava a passear de bicicleta com uma chuva torrencial que se adensava.

Mal chegamos à nossa casinha, a avó acendeu o lume de chão.

Para piorar a situação, não tínhamos luz... Não foi uma coisa que me agradasse muito na altura, muito pelo contrário, fiquei aterrorizada com o facto de horas mais tarde ter que ir dormir sem luz. No entanto, passamos um bom serão, como sempre, junto do lume de chão a falar sobre a grande aventura do dia.

Aqui está um pequeno episódio inesquecível passado com o meu avô, que me marcou profundamente e de uma forma tão especial que ainda hoje guardo na memória. Ironicamente, hoje adoro trovoadas e sinto as saudades que esse dia me deixou, tanto pelo ambiente que se viveu como pela companhia única do meu avô que tive a sorte de presenciar.

Rita Varela Ramos

A DOIDA

Instantâneo de José Falcato Varela

Na Aldeia todos diziam que a velha era doida. E esta afirmação assentava em bases incontestavelmente sólidas. Ninguém o poderia negar. Quem o duvidasse, bastar-lhe-ia fazer-se passar pela porta da sua casa à hora em que o sol punha o oiro da manhã sobre os telhados e lançava o seu bafo morno e confortante sobre os velhinhos que se sentavam na soleira das portas. Lá encontraria, sentada numa cadeirinha baixa, uma velha de preto, pequenina e de lenço na cabeça, sempre à banda. Se atentassem bem, ela lia. Lia e relia cartas com a avidez de uma apaixonada.

Todos os dias a mesma coisa. Pegava na cadeirinha e no volume de cartas atadas com uma tira de pano preto e ia pespegar-se ao sol a ler e a reler.

Não era menos certo que os endiabrados rapazolas da rua tentassem arreliá-la fazendo ir pelos ares o monte de cartas que a velha juntava na covinha do avental.

Nem uma praga, nem um lamento. Com uma santa resignação, levantava-se e com visível dificuldade ia apanhá-las, uma a uma, para logo retomar o lugar e a leitura.

Ora eu um dia, céptico por nascimento, quis certificar-me da loucura da velha e fiz-me passar junto dela. Sim, lá estava. A velha lia e relia o célebre montão de cartas onde a sujidade já punha os seus cambiantes. Porém, algo mais os meus olhos surpresos presenciaram. Enquanto lia, a valha chorava. E um sentimento de ternura estremeceu-me dos pés à cabeça, levando-me a acercar-me dela. A velha, pressentindo a minha presença, levantou para mim uns olhos afogados e ausentes que ficaram presos nos meus. Por fim falou:

- Tal-qual o senhor... Os mesmos olhos, a mesma boca, os mesmos cabelos...

"Não há dúvida", pensei, " a velha está varrida".

Mas logo a seguir continuou:

- O senhor quer vê-lo?

A velha juntou as cartas numa mão, levantou-se e seguiu à minha frente.

- Venha. Faça favor de entrar. Olhe. Ali. Veja bem. O meu neto. Todos os meses me escreve. É só quem tenho no mundo.

E puxando do lencinho amarrotado, foi limpando os olhos e falando com a voz entrecortada de soluços:

- Gostava que o senhor o conhecesse. Não pode haver melhor no mundo. Se ele cá estivesse, não faziam pouco de mim, não... Mas assim... Custa muito, senhor! Eu tive a minha vida. Tive o meu marido e era respeitada. Trabalhei. Mas hoje estou só e pobre. Vivo para o meu neto que está lá longe. Se não fossem as suas cartas!...

Calou-se e continuou a soluçar. E naquele corpinho mirrado e sacudido, os meus olhos viram tão-somente mais uma vítima do mundo idiótico e gélido em que vivemos.


Estremoz, 20-03-1963
PUBLICADA POR CRISTINA VARELA

Quando a morte não mata

Eu não tenho muito jeito para as palavras, mas o meu Tio José Varela, tinha um dom especial para as colocar no papel. Quero deixar aqui um Poema que foi escrito por ele em 1987 após a morte de sua Mãe, nossa Avó, Bárbara Falcato Varela, que é lindíssimo e que agora dedico a ele também.

O teu corpo morreu, mãe...
Só o teu corpo.
E porque, eu compreendo agora
Que um corpo morre quando a alma não cabe nele.
Almas grandes e nobres como a tua,
Sufocam, prisioneiras, das grades do corpo.
E libertam-se.
E a tua libertou-se.
E agora que o teu corpo ficou vazio, mãe,
- E porque tão viva vives dentro de mim -
Absurdo, pôr mais em dúvida a imortalidade da alma.
Mesmo o teu corpo não perecerá em vão:
Em paulatina osmose ele regressará à terra,
(À terra que ele já foi e de onde tudo vem,
A terra que guarda em si a génese de todas as coisas)

E viverá nas plantas...
E viverá nas flores...
E viverá nos frutos;
Nos frutos que darão a vida aos pássaros.
Logo, mãe, eu concluo:
A natureza é a sublimação das coisas,
E eu tenho-te agora maior do que tudo no Mundo.
Do tamanho do Universo.
Estarás agora em tudo,
E no nada,
E na natureza.

E nela viverás em cada Primavera
Que se renova,
Sempre. Sempre. SEMPRE!
José Manuel Varela d’Almeida