quarta-feira, 19 de setembro de 2012

A Doida




SEXTA-FEIRA, 23 DE SETEMBRO DE 2011

A Doida
Instantâneo de José Falcato Varela



Na Aldeia todos diziam que a velha era doida. E esta afirmação assentava em bases incontestavelmente sólidas. Ninguém o poderia negar. Quem o duvidasse, bastar-lhe-ia fazer-se passar pela porta da sua casa à hora em que o sol punha o oiro da manhã sobre os telhados e lançava o seu bafo morno e confortante sobre os velhinhos que se sentavam na soleira das portas. Lá encontraria, sentada numa cadeirinha baixa, uma velha de preto, pequenina e de lenço na cabeça, sempre à banda. Se atentassem bem, ela lia. Lia e relia cartas com a avidez de uma apaixonada.

Todos os dia a mesma coisa. Pegava na cadeirinha e no volume de cartas atadas com uma tira de pano preto e ia pespegar-se ao sol a ler e a reler.

Não era menos certo que os endiabrados rapazolas da rua tentassemm arreliá-la fazendo ir pelos ares o monte de cartas que a velha juntava na covinha do avental.

Nem uma praga, nem um lamento. Com uma santa resignação, levantava-se e com visível dificuladade ia apanhá-las, uma a uma, para logo retomar o lugar e a leitura.

Ora eu um dia, céptico por nascimento, quis certificar-me da loucura da velha e fiz-me passar junto dela. Sim, lá estava. A velha lia e relia o célebre montão de cartas onde a sujidade já punha os seus cambiantes. Porém, algo mais os meus olhos surpresos presenciaram. Enquanto lia, a valha chorava. E um sentimento de ternura estremeceu-me dos pés à cabeça, levando-me a acercar-me dela. A velha, pressentindo a minha presença, levantou para mim uns olhos afogados e ausentes que ficaram presos nos meus. Por fim falou:

- Tal-qual o senhor... Os mesmos olhos, a mesma boca, os mesmos cabelos...

"Não há dúvida", pensei, " a velha está varrida".

Mas logo a seguir continuou:

- O senhor quer vê-lo?

A velha juntou as cartas numa mão, levantou-se e seguiu à minha frente.

- Venha. Faça favor de entrar. Olhe. Ali. Veja bem. O meu neto. Todos os meses me escreve. É só quem tenho no mundo.

E puxando do lencinho amarrotado, foi limpando os olhos e falando com a voz entrecortada de soluços:

- Gostava que o senhor o conhecesse. Não pode haver melhor no mundo. Se ele cá estivesse, não faziam pouco de mim, não... Mas assim... Custa muito, senhor! Eu tive a minha vida. Tive o meu marido e era respeitada. Trabalhei. Mas hoje estou só e pobre. Vivo para o meu neto que está lá longe. Se não fossem as suas cartas!...

Calou-se e continuou a soluçar. E naquele corpinho mirrado e sacudido, os meus olhos viram tão-somente mais uma vítima do mundo idiótico e gélido em que vivemos.


Estremoz, 20-03-1963

ETIQUETAS: -FEIRA, 23 DE SETEMBRO DE 2011





QUARTA-FEIRA, 28 DE SETEMBRO DE 2011
Eu não tenho muito jeito para as palavras, mas o meu Tio José Varela, tinha um dom especial para as colocar no papel. Quero deixar aqui um Poema que foi escrito por ele em 1987 após a morte de sua Mãe, nossa Avó, Bárbara Falcato Varela, que é lindíssimo e que agora dedico a ele também.José Manuel Varela d’Almeida


O teu corpo morreu, mãe...
Só o teu corpo.
E porque, eu compreendo agora
Que um corpo morre quando a alma não cabe nele.
Almas grandes e nobres como a tua,
Sufocam, prisioneiras, das grades do corpo.
E libertam-se.
E a tua libertou-se.
E agora que o teu corpo ficou vazio, mãe,
- E porque tão viva vives dentro de mim -
Absurdo, pôr mais em dúvida a imortalidade da alma.
Mesmo o teu corpo não perecerá em vão:
Em paulatina osmose ele regressará à terra,
(À terra que ele já foi e de onde tudo vem,
A terra que guarda em si a génese de todas as coisas)

E viverá nas plantas...
E viverá nas flores...
E viverá nos frutos;
Nos frutos que darão a vida aos pássaros.
Logo, mãe, eu concluo:
A natureza é a sublimação das coisas,
E eu tenho-te agora maior do que tudo no Mundo.
Do tamanho do Universo.
Estarás agora em tudo,
E no nada,
E na natureza.

E nela viverás em cada Primavera
Que se renova,
Sempre. Sempre. SEMPRE!