quinta-feira, 6 de novembro de 2014

ONTEM VIVI HISTÓRIA

Sessão STOP Tortura na Biblioteca Municipal de Estremoz

Conceição Matos e Domingos Abrantes

Zuzu lendo a dedicatória de Domingos Abrantes

O Núcleo de Estremoz da Amnistia Internacional , a que eu pertenço, organizou um debate sobre a tortura, integrado na Campanha Stop Tortura,  na Biblioteca Municipal de Estremoz. 
Foram convidados Domingos Abrantes e sua mulher Conceição Matos, ambos de 78 anos de idade, que nos falaram das suas prisões na PIDE e de como sobreviveram a tanta brutalidade física e psicológica.
Não os conhecia. Foram-me apresentados já na Biblioteca, minutos antes de começar a sessão.
Amáveis, de sorriso aberto, serenos. Fiquei logo encantada com eles.Domingos Abrantes foi torturado na António Maria Cardoso, a sede da PIDE e depois levado para a prisão de Caxias. 
O primeiro a falar foi Domingos Abrantes  que começou por nos contar  que pior de todos os castigos é o isolamento  -uma pessoa colocada numa cela minúscula com 1 metro de largura, durante meses e meses sem nada para fazer, ler, escrever. Proibir as pessoas de lerem era uma das primeiras coisas que os guardas faziam., e os presos sentiam-se terrivelmente mal, pois ocupar o tempo com a leitura é uma das melhores ocupações. 
Foi sujeito à tortura do sono durante dias consecutivos. Durante 5 dias consecutivos, durante 10 dias, e assim por diante. O preso tem tanta necessidade de dormir que uma simples moeda a rolar no tampo da mesa parece um trovão.  Passa por fracções de segundos pelo sono. Nunca se perde a noção do que se está a sofrer, logo que se ouve a voz do polícia volta-se a ter consciência do que se está a sofrer. Mostram-lhe uma carta em que um hipotético companheiro de partido preso como ele,confessou tudo. Mas o preso está tão cansado que nem se apercebe das palavras que ali estão escritas. 
A certa altura, como ele não confessava nada, e algumas das vezes até se rebelava contra os guardas que o estavam a interrogar, começam a dizer-lhe que compraram  uma máquina americana que descobre e lê o pensamento das pessoas - então montaram todo o cenário, puseram-lhe um capacete com vários fios  ligados à "dita" máquina, mas não aconteceu rigorosamente nada. Estiveram naquilo algum tempo, até que ele lhes disse: "Vocês não têm nenhuma máquina, vocês têm é uma merda!" . 
Estava exausto. Saiu dali sempre a ser muito mal tratado pelos guardas, já não conseguia andar pelo seu próprio pé, e um guarda segurava-lhe por baixo do braço esquerdo e outro por baixo do braço direito e foi assim que o transportaram para uma cela, onde havia um colchão. Deixaram-no em pé, a meio metro do colchão, ele atirou-se para cima dele e dormiu não sabe quanto tempo. Mas quando acordou tinha recuperado algumas forças e a consciência mais clara do que se estava a passar.
Foi para Caxias  e esteve 10 dias no isolamento, às escuras, sem ver uma nesga de luz, a sanita era das romanas, no chão, e ele tinha que ir às apalpadelas para chegar lá. 
27 dias depois de estar preso é que tomou banho, mas ainda hoje não se consegue lembrar que roupa lhe vestiram depois do banho. 
Esteve mais 30 dias no isolamento, mas aí a cela era maior e já podia fazer ginástica. 
Diz Domingos Abrantes: -"Um preso sem livros ficava ainda mais perdido, por isso logo que chegava à prisão tiravam-lhe logo os livros. "
Um dos polícias que o estavam a guardar queria que ele respondesse ao seu cumprimento (Bom Dia!) , mas ele nunca lhe respondia. O guarda estava a ler o jornal  O Século onde vinha na primeira página, a notícia que os Russos mandaram para o espaço um foguetão, então o guarda muito irritado com a notícia  disse-lhe: É tudo mentira, é tudo propaganda desses Russos . Entrou um inspector e pôs-se também a olhar para a notícia. Se calhar não foram os Russos foram os Americanos! disse o guarda. Então o inspector rematou assim: " Nem foram os Russos nem os Americanos, foi a Humanidade!!" 
 Muito mais havia para contar, mas deu a palavra à sua esposa  com quem está casado há 55 anos. 
Conceição Matos é uma mulher de 78 anos,  serena, de sorriso meigo, muito bonita. Enquanto ela estava a falar eu descrevi-a assim:
Muito bonita, umas feições correctissimas, um cabelo branco acinzentado, de caracóis soltos naturais, ( confessou mais tarde que apenas o tinha lavado e secado) , muito bem arranjada, de roupas simples, argolas médias em ouro nas orelhas, sorriso meigo para o marido que revela uma enorme cumplicidade entre ambos.
Começou a falar com uma voz muito sumida, por vezes difícil de ouvir, ( disse mais tarde que fica tão emocionada a relatar o que lhe fizeram que a voz não lhe obedece!).
Foram buscá-la de madrugada à casa onde vivia com o marido ( na altura companheiro) no Montijo. Não teve tempo para nada. Entraram logo de espingardas em punho a ameaçá-la e nunca mais desviaram as espingardas do seu peito. Foi presa com a roupa que tinha vestida e foi buscar um casaco comprido que lhe serviu imenso durante a sua prisão, não no despiu durante 4 meses. 
Tinha-se dificuldade em ouvi-la. Baixava a voz de cada vez que contava um episódio doloroso e brutal. 
Levaram-na para uma sala onde ficou durante 17 dias. Para não perder a noção do tempo, havia um armário em madeira, onde os presos políticos que por ali passavam escreveram os seus nomes, estava todo escrito. Ela arranjou um sítio da madeira e com a unha ia fazendo um risco diariamente para não perder a noção do tempo. Foram 17 dias!!
Estava numa grande expectativa, pois nunca tinha sido presa, era muito jovem, e não sabia se iria resistir às torturas que lhe afligiam. Não queria nem podia falar, custasse o que custasse. Levaram-na Para a António Maria Cardoso para novos interrogatórios. Não queria falar, batiam-lhe, davam-lhe murros na cara, nas pernas, nos braços, ela sentia-se toda partida. Um dos guardas estavam já tão enervado com a situação que lhe gritou: " Se não quer falar, escreva, se não quer escrever, fale!!!!  pois daqui ninguém saiu sem ter falado!!!"
Ainda hoje tem problemas com o evacuar, pois eles não a deixavam ir à casa de banho. Era uma jovem mulher, (bonita, pois se ainda hoje com 78 anos é bonita!) e provocavam-na, metiam-se com ela, chamavam-lhe nome, para que ela começasse a perder a segurança e a autoestima que tinha. 
Começou a ter alucinações, viu um bicho na perna da mesa, as paredes a mexerem e com tantos nervos veio-lhe a menstruação. 
Mostraram-lhe uma carta a fingir que tinha sido escrita pelo companheiro, onde dizia para confessar tudo, para não sofrer mais,  mas ela viu que não era a letra dele. Deixou de comer. Emagreceu tanto que o estômago descaiu. Estava completamente destruída física e psicologicamente. Foram-lhe buscar o casaco, que foram eles a vestir-lho pois ela estava sem forças, e levaram-na de novo para a Prisão de Caxias. 
Nessa noite ouviu bater na parede. Eram sinais sonoros na parede. Começou a perceber que cada pancada correspondia a uma letra. Era um grupo grande de antifascistas, estudantes e outras pessoas que tinha sido presas, pois estava-se a aproximar o 1º de Maio. Através das pancadas perguntaram-lhe se ela tinha falado, e ela respondeu-lhes que não. Eles com as pancadas disseram-lhe: "Coragem hoje e abraços amanhã!"  ela descansou e adormeceu mais tranquila por se sentir tão apoiada. 
Voltou aos interrogatórios. Nessa vez apareceu uma mulher polícia que se chamava a Leninha, era uma mulher tenebrosa, começa a questioná-la e como ela não respondesse começa a esmurrá-la. Começou a despi-la, a cada peça faziam-lhe uma pergunta, como não respondesse, ficou completamente nua.
Ela pensava num livro que tinha lido chamado "Arco-iris....?" onde ela se inspirou, pois conta a história de uma mulher nazi que interroga uma mulher judia num  campo de concentração. Continuam a dar-lhe murros, pontapés, levantam-na pelos sovacos, outro atira-a contra uma cadeira, sempre a cair a levantar-se, a cena manteve-se durante horas. Entram imensos pides numa atitude provocatória, e ela pensa que vai ser violada, mas não, fazem-lhe perguntas e saem... ela está transida de medo, de susto, de dores...
Volta para a Prisão de Caxias. Finalmente aí começa a ter algum sossego, pois os interrogatórios são sempre na António Maria Cardoso. Um dia estava a falar com a mãe no parlatório, e a mãe pergunta-lhe qualquer coisa insignificante que o guarda não gostou, vai junto delas, e fecha a grade com um vidro e manda-a para dentro. 
Outra vez, vinha de um interrogatório da António Maria Cardoso, e de dentro do carro celular " A Ramona" numa fresca vê a mãe junto à porta da Pide, e ela começa a gritar , a gritar descontroladamente, pela mãe, e os guardas  a dizerem-lhe que não era a sua mãe, porque ninguém sabia que ela estava ali presa. A chantagem psicológica sobre os presos é muito grande. Houve pessoas que não resistiram e denunciaram camaradas e colegas. A tortura é a pior forma de destruir um ser humano, a nível físico e  psíquico. Chega-se a uma altura em que o preso não se sente um ser humano.  
Ela e Domingos Abrantes estiveram quatro anos sem se verem. Depois de sair da prisão ela teve que ir fazer um tratamento à União Soviética.



A Fuga de Caxias de 1961 - Relato

A Fuga de Caxias - Testemunho Real de Domingos Abrantes