segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

A vida de um sem-abrigo de Albufeira: «Eu não tenho dinheiro e sou feliz»


A vida de um sem-abrigo de Albufeira: «Eu não tenho dinheiro e sou feliz»

POR KAROLINA DUNETS • 25 DE DEZEMBRO DE 2020 -9:26


O dia a dia de um mendigo nas ruas de Albufeira que gosta da vida que leva

O senhor José Manuel e o seu fiel amigo Poppy – Foto: Karolina Dunets | Sul Informação

Tem 53 anos, quinze dos quais vividos como pessoa sem-abrigo nas ruas de Albufeira, acompanhado pelo seu fiel amigo patudo Poppy. Para eles, é uma luta diária conseguir algum dinheiro e alimento. Apesar das dificuldades, afirma que é uma vida que gosta de viver.

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José Manuel Coelho dos Santos é um homem de bom coração e muito solitário, nascido em Paderne (concelho de Albufeira), onde também viveu até aos seus 16 anos.

Conta que foi abandonado pelo próprio pai, o qual casou com outra mulher e foi viver para a Alemanha. Aos 7 anos, perdeu a mãe deforma trágica. «Cheguei da escola e vejo a minha prima com o tio a chorar, não me diziam nada, não quiseram dizer. Quando soube, chorei tanto, tanto, tanto», recorda.

Apesar de uma vida de criança tão atribulada, fez a 4ª classe e, em seguida, foi trabalhar para uma fábrica em Paderne, para conseguir ajudar a sustentar as suas duas irmãs mais novas.

Na altura, recorda, trabalhou muito. Não gostava do que fazia, até porque foi muitas vezes enganado, não lhe pagavam e parecia um escravo, nem tempo tinha para descansar.

«Meti-me no álcool e nas drogas, e, aos poucos, fui descendo atéchegar aqui onde estou agora», conta o sem-abrigo.

No entanto, acrescenta, agora não bebe e não consome drogas, apenas fuma e mesmo assim não gasta dinheiro em tabaco, porque o pede a quem passa. «Um maço de tabaco custa 4,90 euros, quase 5euros e com esses 5 euros eu consigo comer bem».

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Foto: Karolina Dunets | Sul Informação

Durante quinze anos, viveu nas ruas, uma vida que admite que é "difícil». Mas nos dois últimos anos, habita numa casa velha, sem luz   água.

Conta que juntou algum dinheiro e comprou uma fechadura para a casa e que tem sido uma grande sorte ninguém o expulsar de lá. A casa pertence a uma pessoa que atualmente vive em Lisboa e que, de vez em quando, vem ao Algarve.

Mas este alojamento precário poderá não durar muito: o dono da casa já lhe disse que esta será posta à venda em breve, o que deixa o senhor José Manuel um pouco preocupado, pois o lugar onde costuma dormir é «seguro» e ali não há chances de ser assaltado.

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Quando está a mendigar nas ruas, já passou por situações de pessoas que lhe roubavam moedas e começavam a correr: «eles roubam e correm, eu não vou atrás. O mal que eles fazem vão receber de volta", diz.

Por estas e por outras, o senhor José Manuel não confia muito nas pessoas e, quando consegue dois ou três euros em moedas, guarda-as logo para não voltar a passar por situações iguais.

Para conseguir algum dinheiro, o senhor José acorda cedo e vai para o seu lugar habitual no centro da cidade de Albufeira, pedir ajuda às pessoas que passam por lá. Senta-se num dos lados da rua e mete à sua frente um chapéu, onde as pessoas mais generosas deixam algumas moedas.

Este ano, conta, tem sido muito difícil, pois quem mais lhe dá dinheiro para comprar comida são os turistas. Quando lhe oferecem, almoça num restaurante, outras vezes come no supermercado, outras nem almoça.

«Às vezes, as pessoas chegam perto de mim e oferecem-me comida que eu não consigo comer, porque não tenho dentes. E eu nego. Eles dizem que sou “fino”, mas eu não consigo comer, agradeço muito, mas sinto-me mal por não poder aceitar certos alimentos».

O Poppy – Foto: Karolina Dunets | SulInformação

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A higiene fá-la nas casas de banho públicas da baixa de Albufeira, tem alguma variedade de roupas e sapatos que pode trocar e, assim que pode, lava a sua roupa na lavandaria perto do McDonald’s de Albufeira.

Com a atual situação de Covid-19, o mendigo muitas vezes é expulso do seu lugar habitual pelas autoridades, mas acaba por voltar porque tem «mesmo de ganhar algum dinheiro». Só que já tem sido chamado à atenção pela polícia, levado para a esquadra ou mesmo multado.

«Eles não têm culpa, apenas cumprem o seu trabalho. Os culpados são os de cima», comenta.

O senhor José Manuel passa os dias sozinho, mas sempre na companhia do seu cão, que encontrou no lixo dentro de um saco, há treze anos. Apesar de ser mendigo, tem uma boa relação com as pessoas que vivem e trabalham no centro de Albufeira e que já o conhecem.

Às vezes, uma das suas irmãs que vive nos Olhos d’Água vem visitá-lo para saber como se encontra. Já o tentou acolher na sua casa, mas o senhor José Manuel diz que gosta de ficar sozinho.

Também já houve várias instituições que o tentaram acolher, mas ele esclarece que não aguentou ficar lá por muito tempo. «Eu gosto desta vida, posso andar onde quero, sou livre…o único problema é a fome, a fome custa muito».

Com o pouco que tem, considera-se uma pessoa feliz: «ou tu és feliz ou tu és rico. As pessoas que têm dinheiro tornam-se más, egoístas, capazes de fazer muito mal pelo dinheiro. Eu não tenho dinheiro e sou feliz».

Fotos:

Karolina Dunets | Sul Informação

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POEMAS DE NATÁLIA CORREIA

 


De Amor nada Mais Resta que um Outubro

De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.

E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.

Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.

Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.

Natália Correia, in “Poesia Completa”

Ode à Paz

Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,

Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
                               deixa passar a Vida!

Natália Correia, in "Inéditos (1985/1990)"


BILHETE PARA O AMIGO AUSENTE

Lembrar teus carinhos induz
a ter existido um pomar
intangíveis laranjas de luz
laranjas que apetece roubar.

Teu luar de ontem na cintura
é ainda o vestido que trago
seda imaterial seda pura
de criança afogada no lago.

Os motores que entre nós aceleram
os vazios comboios do sonho
das mulheres que estão à espera
são o único luto que ponho.

Natália Correia, in "O Vinho e a Lira"