quinta-feira, 2 de outubro de 2008

A MARMELADA DA AVÓ BÁRBARA

Avó Idalina, Zuzu, Avó Bárbara (20/9/1969) 
Onze anos, depois de se terem casado, o meu avô, de 38 anos, morreu com uma trombose .
A minha avó, com 35 anos, ficou viúva. Estava grávida, e quatro meses depois, nasceu a minha tia Maria Zé. Ficou com cinco filhos. Todos menores de idade: a minha mãe tinha 7 anos e depois seguiam-se os restantes quatro filhos, o meu tio Jacinto, a minha tia Maria Zulmira, o meu tio Zé e a minha tia Maria Zé.
Quando eu era criança, muitas vezes, ia dormir com a minha avó. Como habitualmente, saíamos da casa dos meus pais, onde tínhamos passado o serão e lá íamos nós as duas, abraçadas uma à outra, pela rua escura, até à sua casa; a minha mãe ficava à porta da nossa casa, com o candeeiro a petróleo na mão, até nos ver entrar. Nunca dormiu sozinha. Quando a minha tia Maria Zé ia para Estremoz e quando mais tarde se casou, alguém tinha que ir dormir com ela, pois era muito medrosa.
Quando chegávamos junto da porta, a minha avó procurava a chave, que nunca estava no bolso onde ela procurava. Assim, muitas vezes, ficávamos ali ao frio, eu esperando impaciente para entrar e a minha avó revistando todos os bolsos. Metia a mão, voltava a meter, e nada! a chave nunca aparecia!
- " Ai filha, queres ver que perdi a chave!!! mas eu quando fechei a porta, meti-a no bolso!! onde é que ela está??!... queres ver que a deixei em casa da tua mãe, em cima da mesa!?!, ora esta!! ..." e ia falando, enquanto continuava a busca incessante... Levávamos sempre algum tempo naquela "cena" até que finalmente aparecia a chave!!! A noite estava escura como breu, e o conseguir meter a chave na fechadura era outra aventura! às vezes, tínhamos que acender fósforos, que se apagavam constantemente, para vermos o buraco da fechadura.
Finalmente, entrávamos.
A porta da entrada dava para a antiga loja, desactivada e fechada há alguns anos. Em cima do balcão estava o candeeiro a petróleo, com a chama muito baixinha, para gastar pouco, com a luz muito mortiça. Mal entrávamos, a minha avó levantava a luz do candeeiro, pegava-lhe e lá íamos nós, uma atrás da outra, corredor fora, até à cozinha.
A casa era muito grande. Reinava o silêncio. Contudo, ouviam-se sempre barulhos estranhos, que me assustavam. Eram o raspar dos cascos das bestas da Prima Maria Ezequiel, que ficavam na cocheira, mesmo ali ao lado; era o estalar das madeiras da mobília velha; eram os ruídos surdos vindos do sotão; eram as folhas das árvores que se agitavam com o vento. Eu precisava de algum tempo, para me habituar ao silêncio e àqueles "sons, depois ficava descansada e tranquila. Nunca fui medrosa, mas aquele ambiente, pesado e austero, provocava-me alguma ansiedade...
Na cozinha, a minha avó punha o candeeiro em cima da grande mesa de madeira. Abria uma das gavetas, e tirava de lá a faca do pão. Era uma faca própria, que servia unicamente para cortar o pão. Todas as semanas era areada com palha de aço, parecia de prata; cortava muito bem, apesar da lâmina estar muito gasta.
Eu sentava-me e observava os movimentos da minha avó. Íamos sempre falando, uma com a outra. A minha avó sempre foi uma óptima conversadora e sempre gostou muito de conversar comigo.
A minha avó tirava as tigelas de louça do armário. Ia buscar o fervedor, com o resto do caldo de farinha, que tinha feito pela manhã e colocava-o em cima da boca do fogão a gás para que aquecesse. Ia à despensa e trazia de lá, o saco de tecido branco imaculado, onde guardava o pão alentejano. Depois ia à casa de jantar buscar a saladeira da marmelada.
O caldo de farinha já estava quente e a minha avó enchia as tigelas. Depois cortava fatias muito finas, a todo o comprimento do pão. Por cima, colocava uma fatia fina de marmelada. Tudo era feito com muita delicadeza, com muita ternura, com muita calma e tranquilidade. Deliciávamo-nos com aquele manjar!!!
A marmelada da minha avó Bárbara era muito saborosa. Muito fina e macia, algumas vezes, encontrávamos torrõezinhos de açúcar, no meio, o que a tornavam ainda mais deliciosa.
A elaboração da marmelada era muito complicada e levava-se um ou mais dias a fazer.
Era feita em casa, com os marmelos da propriedade do meu bisavô. Depois de descascados, os marmelos eram cortados em bocados e cozidos em água. Depois, escorriam-se da água e passavam-se pelo passe-vite. Punha-se essa "massa" de marmelo num tacho de cobre, juntava-se o açucar amarelo e ia ao lume de chão, em cima duma trempe, mexendo-se continuamente, com uma colher de pau. Quando estava no ponto, arredava-se. A marmelada era posta em tigelas de louça que secavam ao sol, durante alguns dias. Depois, cortava-se papel vegetal do tamanho das tigelas e punha-se por cima a tapar a marmelada. Guardava-se e era comida durante todo o ano.
Quando acabávamos de comer, a minha avó metia o pão, novamente, dentro do saco de pano e guardava-o na despensa. As tigelas ficavam em cima do lava-louças, para serem lavadas no dia seguinte. Ia levar a marmelada para o armário da casa de jantar, onde sempre foi o seu lugar e depois de tudo arrumado, lá íamos para a cama.
A minha avó era uma pessoa muito delicada e de muito boas maneiras. Sempre a conheci muito atenta às necessidades da casa, muito perfeita em todas as tarefas que realizava, muito asseada e limpa. Era sobre tudo muito educada. A casa estava sempre muito arrumada e limpa, as roupas da cama era brancas de neve e a minha avó cheirava sempre muito bem... eu adorava ir dormir com ela...