Texto belíssimo da minha amiga Risoleta Pinto Pedro
Neste ainda dia dos Reis, em antecipação, um excerto de um livrinho que aí vem a caminho, faz sua viagem como qualquer mago, como qualquer rei. Ainda não terá revelado hoje seu título, mas apenas um dos subtítulos:
"UM APRECIADOR DE ROSAS, UM ADOLESCENTE, DUAS RAPARIGAS E UMA LOURA"
Pelo meio da ficção contém, a páginas tantas, a receita de um bolo que não sendo a mesma do bolo-rei, tem a mesma força simbólica deste. Cada ingrediente é um símbolo, a sua execução um ritual. Aqui fica como aperitivo para o livrinho que há-de chegar este ano, talvez nos primeiros meses, como agradecimento aos três Reis ou Magos que há tantos séculos repetem a viagem até ao menino, assim nos indicando o caminho em direção a nós:
" [...] resolvi fazer a festa do ouro da prata e da canela desse modo festejando, sem agredir sensibilidades mais laicas, o ouro, o incenso e a mirra.
Em homenagem ao tempo e à eternidade, fiz um bolo de ouro, prata, canela, incenso e mirra. Primeiro confeccionei o bolo e depois, enquanto cozia, escrevi a receita. Para nunca mais me sentir pássaro em cozinha de insone. Aqui fica a receita que não é estática mas estética e ética e como tal, aberta a aperfeiçoamentos:
NONA RECEITA
BOLO DE OURO, PRATA E CANELA
Grau de dificuldade: inclassificável
Pega-se na falta de tempo e arruma-se numa gaveta; não deixa crescer os bolos. Só então, munidos deste preciso levedante que é a ausência do que não existe, estamos preparados para o fazer.
Começamos por procurar os ingredientes. Parte deles não encontramos nos supermercados. Começa-se por remexer em todas as antigas gavetas
cuidado para não abrir a tal...
e procuram-se as recordações douradas. As de prata recolhem-se da lua pela janela do quarto deixada entreaberta. Fecha-se a janela depois da meia-noite, após a recolha feita. Por causa das constipações e também para que não fujam. Quanto à canela, não é difícil encontrá-la no supermercado, mas convém intensificar-lhe o aroma à beira-rio, na memória das caravelas
pedir, para isso, a ajuda de Cesário ...,
ou junto de um misterioso barco aí ancorado e um dia descoberto com um ser muito amado.
Procura-se então um momento em que, na casa, os adolescentes estejam a dormir.
São elementos muito perturbadores ao crescimento dos bolos, digo devoradores, sobretudo os mais cépticos, digo, gulosos
e começa-se por acender o Athanor, esse lento forno alquímico. À falta dele, serve o forno a gaz, que sempre o óptimo foi inimigo do possível, e não se podendo fazer a alquimia certa, faz-se, ao menos, a da humildade, o primeiro passo no caminho.
Depois de dispor ritualisticamente sobre a mesa os ingredientes, a saber:
- Farinha (cor de prata, obviamente)
- açúcar (dourado, claro)
- açúcar (prateado, pelos motivos que abaixo se explica)
- ovos (esse precioso sol semente)
- canela (dispensa apresentações, mas convém respirá-la bem, faz bem aos espirros, queria dizer, faz espirros, uma forma de lavar a alma)
- marmelada (de preferência de marmelos amadurecidos ao sol; se tiverem sido pintados por um pintor, melhor)
- chocapics da nestlé, passe a publicidade (porque é preciso saber sorrir)
- estrelitas, pelo mesmo motivo e também para trazer para dentro do nosso bolo uma fatia de céu.
- moedas douradas de chocolate das que há nas confeitarias.
- um ovo de chocolate envolto em prata desses que dávamos às crianças quando elas eram crianças e ainda não nos tinham ultrapassado em altura e continuamos a dar-lhes agora que pensam que já não são e já nos ultrapassam em altura.
Envolvem-se os ingredientes
à excepção do açúcar prateado, das moedas douradas, do ovo de prata, dos chocapics, da marmelada e das estrelitas
com muito amor e ao estilo e ao ritmo de cada um, e coloca-se a mistura dentro do Athanor
mesmo disfarçado de forno vulgar.
Pelo meio, pode atender-se o telefone, mas só telefonemas de amor, palavras que não nos distanciem, nem nos descentrem.
Quando o coração o disser, volta-se ao fogo e salva-se o bolo, no momento certo.
Coloca-se sobre a pedra polida da bancada e com uma faca a que se segredou mil cuidados, corta-se ao meio, longitudinalmente e em movimentos circulares. Perfeitos. Convém ter trinado, digo treinado, antes, mas como se verá o trinado também não é descabido.
Separam-se as partes e sobre Malkuth
para quem não saiba: a parte de baixo, o Mundo
coloca-se a marmelada, os chocapics e as estrelitas. Sopra-se lá para dentro um mantra de amor. Quem não souber, canta uma canção, que fica bem à mesma. Pode ser de embalar ou de exaltar. Depende do momento. Cobre-se com Kether
para quem não souber, a coroa real, a parte de cima, aquela que todos já conhecemos antes de cairmos. Por isso construímos este bolo como uma escada de Jacob.
Chegou o momento de bater
homeopaticamente
umas claras que deixámos de parte com o açúcar prateado
pormenor técnico: primeiro as claras; quando começar a desenhar-se pelo meio delas um castelo, junta-se o açúcar e continua-se, até o castelo estar bem firme sobre nuvens.
Cobre-se integralmente o bolo com o creme de nuvens prateadas
o castelo dissolveu-se, de comoção e amor
e finalmente decora-se perfeita e circularmente com as moedas de ouro, mais estrelas da nestlé e no centro, como qualquer semente, o ovo de prata.
Este bolo receita-se às pessoas de quem gostamos muito e também às outras.
Não se devora. Comunga-se.
As quantidades dependem muito do momento. Mais doçura, menos açúcar e vice-versa. A primeira hipótese é melhor mas a segunda também não é má, se não for frequente.
O Rubem gostou tanto da receita e do bolo, e talvez com saudades das Lições do Tonecas, sentiu estimulada a sua criatividade a ponto de iniciar uma redacção imaginando que era ainda menino ou que era a sua abandonada personagem e escrevia ..."
http://aluzdascasas.blogspot.pt/
Neste ainda dia dos Reis, em antecipação, um excerto de um livrinho que aí vem a caminho, faz sua viagem como qualquer mago, como qualquer rei. Ainda não terá revelado hoje seu título, mas apenas um dos subtítulos:
"UM APRECIADOR DE ROSAS, UM ADOLESCENTE, DUAS RAPARIGAS E UMA LOURA"
Pelo meio da ficção contém, a páginas tantas, a receita de um bolo que não sendo a mesma do bolo-rei, tem a mesma força simbólica deste. Cada ingrediente é um símbolo, a sua execução um ritual. Aqui fica como aperitivo para o livrinho que há-de chegar este ano, talvez nos primeiros meses, como agradecimento aos três Reis ou Magos que há tantos séculos repetem a viagem até ao menino, assim nos indicando o caminho em direção a nós:
" [...] resolvi fazer a festa do ouro da prata e da canela desse modo festejando, sem agredir sensibilidades mais laicas, o ouro, o incenso e a mirra.
Em homenagem ao tempo e à eternidade, fiz um bolo de ouro, prata, canela, incenso e mirra. Primeiro confeccionei o bolo e depois, enquanto cozia, escrevi a receita. Para nunca mais me sentir pássaro em cozinha de insone. Aqui fica a receita que não é estática mas estética e ética e como tal, aberta a aperfeiçoamentos:
NONA RECEITA
BOLO DE OURO, PRATA E CANELA
Grau de dificuldade: inclassificável
Pega-se na falta de tempo e arruma-se numa gaveta; não deixa crescer os bolos. Só então, munidos deste preciso levedante que é a ausência do que não existe, estamos preparados para o fazer.
Começamos por procurar os ingredientes. Parte deles não encontramos nos supermercados. Começa-se por remexer em todas as antigas gavetas
cuidado para não abrir a tal...
e procuram-se as recordações douradas. As de prata recolhem-se da lua pela janela do quarto deixada entreaberta. Fecha-se a janela depois da meia-noite, após a recolha feita. Por causa das constipações e também para que não fujam. Quanto à canela, não é difícil encontrá-la no supermercado, mas convém intensificar-lhe o aroma à beira-rio, na memória das caravelas
pedir, para isso, a ajuda de Cesário ...,
ou junto de um misterioso barco aí ancorado e um dia descoberto com um ser muito amado.
Procura-se então um momento em que, na casa, os adolescentes estejam a dormir.
São elementos muito perturbadores ao crescimento dos bolos, digo devoradores, sobretudo os mais cépticos, digo, gulosos
e começa-se por acender o Athanor, esse lento forno alquímico. À falta dele, serve o forno a gaz, que sempre o óptimo foi inimigo do possível, e não se podendo fazer a alquimia certa, faz-se, ao menos, a da humildade, o primeiro passo no caminho.
Depois de dispor ritualisticamente sobre a mesa os ingredientes, a saber:
- Farinha (cor de prata, obviamente)
- açúcar (dourado, claro)
- açúcar (prateado, pelos motivos que abaixo se explica)
- ovos (esse precioso sol semente)
- canela (dispensa apresentações, mas convém respirá-la bem, faz bem aos espirros, queria dizer, faz espirros, uma forma de lavar a alma)
- marmelada (de preferência de marmelos amadurecidos ao sol; se tiverem sido pintados por um pintor, melhor)
- chocapics da nestlé, passe a publicidade (porque é preciso saber sorrir)
- estrelitas, pelo mesmo motivo e também para trazer para dentro do nosso bolo uma fatia de céu.
- moedas douradas de chocolate das que há nas confeitarias.
- um ovo de chocolate envolto em prata desses que dávamos às crianças quando elas eram crianças e ainda não nos tinham ultrapassado em altura e continuamos a dar-lhes agora que pensam que já não são e já nos ultrapassam em altura.
Envolvem-se os ingredientes
à excepção do açúcar prateado, das moedas douradas, do ovo de prata, dos chocapics, da marmelada e das estrelitas
com muito amor e ao estilo e ao ritmo de cada um, e coloca-se a mistura dentro do Athanor
mesmo disfarçado de forno vulgar.
Pelo meio, pode atender-se o telefone, mas só telefonemas de amor, palavras que não nos distanciem, nem nos descentrem.
Quando o coração o disser, volta-se ao fogo e salva-se o bolo, no momento certo.
Coloca-se sobre a pedra polida da bancada e com uma faca a que se segredou mil cuidados, corta-se ao meio, longitudinalmente e em movimentos circulares. Perfeitos. Convém ter trinado, digo treinado, antes, mas como se verá o trinado também não é descabido.
Separam-se as partes e sobre Malkuth
para quem não saiba: a parte de baixo, o Mundo
coloca-se a marmelada, os chocapics e as estrelitas. Sopra-se lá para dentro um mantra de amor. Quem não souber, canta uma canção, que fica bem à mesma. Pode ser de embalar ou de exaltar. Depende do momento. Cobre-se com Kether
para quem não souber, a coroa real, a parte de cima, aquela que todos já conhecemos antes de cairmos. Por isso construímos este bolo como uma escada de Jacob.
Chegou o momento de bater
homeopaticamente
umas claras que deixámos de parte com o açúcar prateado
pormenor técnico: primeiro as claras; quando começar a desenhar-se pelo meio delas um castelo, junta-se o açúcar e continua-se, até o castelo estar bem firme sobre nuvens.
Cobre-se integralmente o bolo com o creme de nuvens prateadas
o castelo dissolveu-se, de comoção e amor
e finalmente decora-se perfeita e circularmente com as moedas de ouro, mais estrelas da nestlé e no centro, como qualquer semente, o ovo de prata.
Este bolo receita-se às pessoas de quem gostamos muito e também às outras.
Não se devora. Comunga-se.
As quantidades dependem muito do momento. Mais doçura, menos açúcar e vice-versa. A primeira hipótese é melhor mas a segunda também não é má, se não for frequente.
O Rubem gostou tanto da receita e do bolo, e talvez com saudades das Lições do Tonecas, sentiu estimulada a sua criatividade a ponto de iniciar uma redacção imaginando que era ainda menino ou que era a sua abandonada personagem e escrevia ..."
Sem comentários:
Enviar um comentário