O meu tio Zé Varela, que sempre admirei e com quem tive uma relação afectiva muito forte, se não tivesse partido, estariamos hoje a festejar os seus 80 anos. Assim, como não lhe posso dar o beijo de parabéns que ele me retribuiria com o seu sorriso aberto, meigo e feliz que sempre mostrava, vou escrever um texto que relata bem as memórias boas e singelas que guardo dele.
Quando eu tinha 11 anos, fui estudar para o Colégio de S. Joaquim em Estremoz (actual Escola 2,3 Sebastião da Gama), e fiquei hospedada na sua casa do Bairro de Santo António (hoje é neste bairro que fica o Supermercado Pingo Doce) , logo a casa ficava num extremo oposto ao colégio. A distância era enorme, e a minha pasta tinha sido mandada fazer ao sr. Contente do Cano, famoso pelas suas carteiras, pastas e afins, em couro verdadeiro e de duração ilimitada. Pesava "toneladas", pois o meu pai pedira o couro mais durável que ele tivesse!. Não deixavamos os livros na escola, e assim, fazia quatro vezes, o caminho do Barirro de Santo António para a zona do Caldeiro. A pé, chovesse a potes, fizesse um frio de rachar, fizesse vento que tudo levava pelos ares, fizesse o calor abrasador de Estremoz, lá ia eu de pasta na mão cheia de livros, logo pelas 8 horas da manhã, voltava de novo com a pasta ao meio dia para almoçar. Depois de almoçar muito rapidamente, mudava os livros das disciplinas da manhã para as da tarde, e lá ia eu, pasta na mão a caminho do colégio onde ia ter aulas das 14horas até às 18h. Nos dias de Ginástica, hoje Educação Física ainda levava um saco de pano branco mandado fazer de propósito para transportar o uniforme de ginástica (saia calça. blusa de malha interloc branca, meias brancas e sapatilhas de ginástica brancas), por isso, nesse dia, a carga era mais pesada e o cansaço era ainda maior.
O percurso da escola para casa e da casa para a escola era e é muito comprido, a distância era interminável. Atravessávamos o Rossio e lá iamos nós, eu, a Aurita, a Genhinha e a Luisa, felizes, bem dispostas, sem um queixume sobre a distância que tínhamos que percorrer 4 vezes ao dia!!!
Muito esporadicamente, o Sr Dias, pai da Geninha, que tinha uma loja de tecidos no Largo da República, dava-nos boleia, o que para nós era uma festa e um alívio, pois chegávamos mais depressa e menos cansadas.
A minha pasta era forte e feia. Eu não conseguia de maneira nenhuma ver-me livre dela. Então muitas vezes, mandava a pasta com toda a força, pelo pavimento de cimento do recreio, ela escorregava pelo chão e depois eu ia buscá-la ao outro extremo do pátio. Queria que ela se estragasse para poder ter uma mais leve... mas nunca o consegui!!! a pasta durou anos, e anos, e anos... sempre impecável... os cantos não estavam a desfazer-se, a mola para fechar continuava operacional e a pega da pasta firme, mas firme!!!! e a pasta acompanhou-me sempre, durante o meu percurso escolar do 1º ano do preparatório ao 5º ano do liceu.
À tarde, quando vinha do colégio, e passava no Rossio, encontrava-me muitas vezes, mesmo quase todos os dias, com o meu tio Zé Varela, que saía religiosamente às 18 horas do escritório , onde era escriturário e se dirigia para casa. Íamos juntos de regresso. Ele andava sempre um livro debaixo do braço, pois a leitura era um dos seus melhores passatempos. Tinha uma postura muito elegante, alto, magro, cabelo preto, com o seu fato muito bem tratado, as camisas brancas impecávelmente passadas pela tia Maria Emília, as calças com um vinvo bem marcado. O meu tio interessava-se e queria saber como me tinha corrido o dia, e quando eu começava a falar sobre o meu dia na escola, ele começava a contar-me histórias do seu tempo de menino, de adolescente e naquele tempo (1961) de pai babado com a minha prima Maria Cristina, que era uma bébé adorável, muito bonita, rechonchudinha, risonha e sempre bem disposta.
Por vezes, quando íamos no Rossio, ouvíamos o assobio muito característico e muito pessoal do meu tio Jacinto, que nos tinha visto à distância e que queria juntar-se a nós. Aquele assobio era único. Pareciam rouxinóis a cantar nas árvores. Onde quer que um deles fizesse aquele assobio já sabiam que era um irmão a chamar o outro irmão.
Hoje, 52 anos passados, ainda recordo aquele assobio. Já não o posso ouvir, pois o tio Zé já cá não está e o tio Jacinto já não o pode chamar... mas, o assobio era inesquecível, bonito, harmonioso, alegre, direi mesmo que era uma pequena peça musical; era um assobio de grande cumplicidade, muito, mas mesmo muito pessoal, o que tornava esta forma de se comunicarem única.
Mais não escrevo, mas há tanta coisa a dizer deste querido tio que tanta saudade nos deixou...
Casa Branca, 28 de Setembro de 2011
zuzu