Os dois sóis do marmelo
Madrid, começo do outono: Antonio López decide-se a pintar o toque suave do sol da manhã sobre as folhas e os frutos do marmeleiro no jardim de sua casa e convida o realizador Víctor Erice para filmá-lo enquanto pinta.
Para pintar o sol no marmelo o pintor constrói uma espécie de aparelho de olhar : pequenas pinceladas no tronco, nas folhas e nos frutos do marmeleiro ; cordéis suspensos no ar ; pregos fincados no chão para indicar a posição do cavalete que sustenta a tela e a distância entre a tela e o pintor. Estas marcas no chão e no espaço compõem a imagem; limitam, enquadram o que será pintado. O pintor traça uma moldura ou visor virtual : o cordel diante do marmeleiro, os traços e cruzes nas folhas e frutos da árvore só fazem sentido para os olhos do pintor.
O quadro não se conclui. O outono chuvoso esconde as cores que o pintor queria pintar. Sem o sol, ele decide retratar a árvore e os frutos num desenho em preto e branco, projeto igualmente abandonado. A chuva mais forte nos dias seguintes torna impossível desenhar no jardim, diante do marmeleiro.
El sol del membrillo, de Víctor Erice (1992) documenta a pintura que não se conclui e por isso mesmo, de modo radical, reafirma que num filme o que se vê não é exatamente a reprodução do que realizador viu, mas sim o olhar do realizador. Como aqui o realizador olha um personagem que olha (não vê o que ele vê : vê como ele constrói o seu olhar) talvez seja possível dizer que o diretor diante do pintor vê como um espectador vê quando tem diante se si um documentário.
E talvez se possa dizer também que o quadro não concluído se conclui no filme. Uma fusão entre cinema e pintura, El sol del membrillo realiza o sonho partilhado de López e Erice.
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