Zuzu era uma criança alegre, muito amiga de conviver e adorava andar a brincar na
rua, ia a casa dos avós, visitava a avó viúva, brincava em casa das amigas mas o que
ela mais desejava, era estar fora de casa.
Naquele tempo, com 7 ou 8 anos, era
aluna da escola primária. E sobretudo, à sexta-feira, tinha a obsessão de ir
brincar para casa da sua prima Zinda, que morava na parte de baixo da aldeia. Saíam as duas da escola e procurando
as ruas que as levavam a casa da prima, sem passar pela sua casa, lá iam elas, felizes e contentes, passar o resto da tarde
e se possível dormir em casa da
prima.
A
tia Adozinda, mãe da Zinda, estava como habitualmente, sentada no lado de
dentro do balcão, junto à gaveta do dinheiro, num cantinho bem resguardado,
onde lia; só se levantava dali, para ir atender a cliente que chegava, depois
voltava para o seu poiso preferido, calma e tranquilamente, lendo o livro de romance, pois ela adorava ler. Era uma mulher muito forte, com umas grandes
ancas, pernas gordas, que recebia sempre Zuzu e Zinda com um sorriso lindo na sua cara muito redonda e sem rugas,
muito meiga, tranquila e simpática.
Zuzu e Zinda iam para a pequena cozinha, onde ardia o lume de chão; lanchavam, cheias de apetite, o pão com manteiga e açúcar, com marmelada ou queijo, que tinha acabado de sair do forno de lenha do tio João Perninhas. Sentavam-se à camilha, junto do lume e faziam os
trabalhos da escola. Depois, se o tempo estivesse bom, iam para o quintal brincar
com o que lhes apetecesse. O quintal não se podia considerar muito bonito.
Havia muita lama e tinham que procurar um carreiro de pedra bem junto às
paredes para não ficarem atascadas. Uma grande meda de lenha ficava junto ao
portão, que dava acesso à outra rua e que servia para alimentar o forno, onde o
pão e os bolos eram cozidos de madrugada. A seguir à lenha havia mais lama e
depois o galinheiro. As galinhas estavam numa capoeira de rede, a meio do
quintal e Zuzu e Zinda entretinham-se tempos sem fim, a vê-las com os seus
pintainhos atrás da mãe, com os galarispos ou cocós que andavam sempre a
brincar uns com os outros, ou com os galos de crista vermelha e de cauda
adornada de lindas e grandes penas multicores.
Aquele quintal não era bonito, mas tinha
certos recantos maravilhosos. A tia Adozinda adorava flores! Mandava vir pelo
correio, sementes de todas as variedades, que ela semeava e via nascer e crescer
com toda a paciência. Havia muitos, muitos vasos, junto às paredes que ladeavam
o quintal, onde cresciam as sementes que tinham vindo de Lisboa ou do Porto.
As crianças entretinham-se a ver em qual dos vasos despontavam as
primeiras folhinhas, e que mais tarde, seriam as flores maravilhosas do quintal.
Não lhes tocavam, pois sabiam como a tia Adozinda era ciosa com as suas flores. Na Primavera
ou perto do Verão, nasciam flores maravilhosas como amores-perfeitos, brincos
de princesa, gladíolos de todas as cores, cravos túnicos, estrelas imperiais e
muitas, muitas mais flores.
O
poço era outra das curiosidades do quintal, pois servia três casas. Umas paredes
pequenas, laterais, dividiam-no, uma parte para a casa onde sempre morara a minha bisavó Ana Rita, e que agora pertencia à Prima Joaquina Inácia, onde as criadas iam colocar grandes cestos cheios de garrafas para refrescarem, outra parte, para a
casa da tia Josefa Mercês e outra para a casa da tia Adozinda. Não era largo, era estreito, cada
vizinha tinha o seu caldeiro emborcado na parte que lhe cabia. Zuzu e Zinda adoravam ir para junto do poço, pois a qualquer momento, uma das
vizinhas vinha tirar dali água e elas adoravam falar com elas. Parecia um poço
e um local de bonecas, parecia um brinquedo, em comparação com o poço enorme,
rectangular e de paredes altas que existia no quintal de Zuzu.
Quando
chovia ou fazia frio, elas iam brincar para a casa do forno. A
casa do forno ficava por cima da padaria. Tinha uma enorme semi-circunferência
bojuda e quente, que era a parte de cima do forno o qual ficava por baixo. Junto
às paredes, pois não havia muito espaço, sentadas no chão morno, brincavam às
casinhas, com as bonecas e os brinquedos de Zinda. Tanto brincavam que se
esqueciam do tempo passar. De tempos a tempos, aparecia uma vizinha com um
grande alguidar de roupa à cabeça, que ia estender por cima da cúpula quente.
Nos dias de inverno, as pessoas mais pobres tinham pouca roupa e secar a pouca roupa que tinham era muito problemático. Os
tios de Zuzu sempre se disponibilizaram para que as vizinhas ali secassem a
roupa.
Zuzu nunca mais se lembrava da sua casa, nem se lembrava do que a esperava quando
voltasse.
A
tia Adozinda insistia para que ela jantasse com eles. Ela não se fazia rogada.
O pai de Zinda, tio de Zuzu, a tia Adozinda, o primo Manuel Joaquim, Zinda e Zuzu e muitas vezes a empregada Gertrudes, sentados à camilha junto do lume que ardia na chaminé, jantavam calmamente e tranquilamente,
e Zuzu adorava sobretudo aquela canja de arroz com muito pouco caldo e como
segundo prato, a galinha corada com batatas fritas. Ia-se à loja buscar a fruta
da época, que lá havia para vender. Respirava-se um ambiente calmo e tranquilo.
O tio João, mal acabava de jantar, sentava-se numa cadeira baixa junto ao lume, a
tia lavava a loiça, o primo já crescido saía com os amigos e Zuzu e Zinda iam à pressa deitar-se, para quando o empregado dos seus pais a viesse buscar,
a tia Adozinda dizer-lhe que ela já estava na cama.
Ouviam bater à porta. Era o Chico, empregado da casa da Zuzu, que a vinha buscar a mandado da mãe. Ela ouvia a tia Adozinda a dizer ao Chico que ficassem descansados que ela já estava a dormir, e que ficava lá em casa.
O
quarto ficava junto à mercearia, o cheiro era um misto de pão fresco, de batatas,
chouriços, bacalhau, fruta e tudo o que lá se vendia; aquela miscelânea de
cheiros entrava pelo quarto e ficava debaixo dos lençóis, Zuzu sentia-se num mundo diferente.
A cama de ferro, encostada à parede, onde dormiam as duas primas, ficava ao lado da
cama de madeira onde os tios dormiam, fazia parte da restante mobília de quarto. O tio deitava-se cedo, pois tinha
que se levantar às 4h da manhã para ir para a padaria fazer o pão. A prima
dormia, mas Zuzu ouvia-o a levantar-se, a acender o candeeiro a petróleo, a
deitar a água com o jarro na bacia, a lavar-se no móvel-lavatório de madeira
com a bacia incrustada, onde dos lados estavam penduradas as toalhas de rosto.
Por baixo, havia duas portas de madeira onde um balde estava guardado e para
onde caía a água suja da bacia. Cheirava a água fresca e a sabão. O quarto era
interior, e por isso durante a noite, a escuridão era absoluta. O tio vestia-se,
calçava-se e tossia e quando saía apagava o candeeiro e tudo voltava a ficar na
escuridão. Zuzu ouvia o respirar profundo da tia e da prima a
dormirem. Aos poucos, o sono voltava e ela adormecia.
A manhã aproximava-se. Zuzu começava a ficar assustada, por uma vez mais, ter desobedecido à mãe, que
não queria que ela saísse da escola e fosse para casa da prima sem avisar. Zuzu sabia que se fosse pedir-lhe ela não a deixaria ir!
Os
nervos começavam a apoderar-se dela. Já não tinha prazer em comer o
pequeno-almoço com o pão acabadinho de cozer. Estava com medo. Pedia à prima
que fosse com ela levá-la a casa, pois talvez assim a mãe não lhe batesse. A
prima, muito bondosa e muito amiga, dizia-lhe que sim, que ela iria levá-la a
casa, talvez assim a mãe não lhe batesse tanto.
As
duas, muito juntas, lá iam a caminho da casa de Zuzu. Quanto mais se
aproximavam da casa, mais os nervos se apoderavam de ambas. As duas crianças iam
muito caladas.
Chegavam. A mãe de Zuzu, normalmente, estava no quintal, sempre hiperactiva, sempre a
lidar de um lado para o outro, sempre a trabalhar. Via-as chegar e perguntava a Zuzu porque tinha ido dormir a casa de Zinda. Ela não sabia
responder-lhe. Sabia, apenas, que a vontade de ir para casa da prima era mais
forte que o medo de levar uma sova. Zinda tentava defender a prima, mas não
ganhava nada com isso. A tia Amélia, mãe da Zuzu, muito enervada, levantava-lhe as saias
curtas e dava-lhe palmadas e mais palmadas até se cansar. Zinda fugia dali,
não queria ver a prima a chorar. Zuzu ficava com os dedos da mão da mãe
marcados nas nádegas, durante horas. Doíam-lhe e ardiam-lhe as nádegas e
sobretudo questionava-se: - "Porque razão a mãe lhe havia de bater com tanta
raiva, quando ela não tinha feito nada de tão errado!" Ia chorar para o seu
quarto. Deitava-se na cama, de bruços e chorava, chorava até ficar exausta.
Sentia-se tão infeliz! Porque razão a mãe lhe batia assim? Uma das vezes, em
que Zuzu chegou da casa de Zinda, a mãe foi buscar uma corda grossa e
bateu-lhe com a corda, pois quando lhe batia com a mão, esta ficava-lhe a doer. Ela via na cara bonita da mãe, a expressão de raiva, de zangada, de fúria incontida .
Nem se atrevia a olhar para ela. Porquê aquela raiva? Porquê aquele ar de
zangada? Porquê aquela expressão de fúria nos seus olhos e na sua boca? Sentia-se
a menina mais infeliz à face da Terra. Pelo dia adiante, Zuzu parecia que
esquecera a sova. Ria e brincava com os seus brinquedos, como se nada fosse.
Contudo, no fundo do seu coração, bem lá no fundo, sentia que a mãe não gostava
dela, pois se gostasse não lhe batia tanto, como batia…
E
o pai não sabia de nada… chegava alegre e bem disposto, brincalhão como sempre …
a mãe nunca lhe disse, que naquela manhã, tinha dado mais uma sova a Zuzu… que adorava ir dormir a casa dos tios.
alterado no dia 7 Fevº 2023
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