CARTA
A MINHA MÃE SOBRE O SNS E OUTRAS COISAS EM PORTUGAL
Resolvi escrever a
minha Mãe. Ela partiu há dois anos, em Outubro de 2010. Mas talvez o seu
espírito, que, como diria Jorge Luís Borges, está sempre a meu lado (A Posse do
Ontem, em Os Conjurados), me consiga inspirar a pensar melhor sobre o assunto.
Aqui vai o meu texto
para ela:
por Teresa Pizarro
Beleza*
"Mãe,
sabes que agora em Portugal mandam uns senhores que estão a dar cabo do Serviço
Nacional de Saúde? E que dizem que é por causa de uma tal de troika, que agora
manda neles? Lembras-te da "Lei Arnaut", que, segundo ele mesmo diz,
tu redigiste, depois de muito pensares e estudares sobre o assunto, com a
seriedade e o empenho que punhas em tudo o que fazias?
Lembras-te das nossas
conversas sobre a necessidade de toda a gente em Portugal ter acesso a cuidados
de saúde básicos de boa qualidade e de como essa possibilidade fizera em poucos
anos baixar drasticamente a mortalidade materna e infantil, flagelos nacionais
antigos, como uma das coisas boas que se tornaram realidade depois de 1974 e
com a restauração da democracia?
Lembras-te de quando eu
te dizia que eras tão mais socialista do que "eles", os do Partido
Socialista, e tu te zangavas porque não era essa a tua imagem e a tua crença?
E quando eu te dizia
que o ministro António Arnaut era maçon e tu não acreditavas, porque ele era (e
é) um homem bom - e para ti a Maçonaria era a encarnação do Diabo...
Mãe, tu, que te dizias
e julgavas convictamente monárquica, católica, miguelista, jurista cartesiana
(isso era o que eu te dizia e que penso que eras, também), que conhecias a
Bíblia e Teilhard de Chardin como ninguém e me ensinaste que Deus criara o
homem e a mulher à Sua imagem, quando pronunciou o fiat, porque assim se diz no
Génesis...
Tu que dizias que o
problema dos economistas era que não tinham aprendido latim... e me tiravas as
dúvidas de português e outras coisas, quando me não mandavas ir ao dicionário,
como agora eu mando o meu Filho...
Tu que foste o meu
"Google", às vezes renitente, quando este ainda não existia... Sabes
que agora manda em Portugal gente ignorante e pacóvia, que nem se lembra já de
como se vivia na pobreza e na doença, que julga que o Estado se deve retirar de
tudo, incluindo da Saúde, e confunde a absoluta e premente necessidade de
controlar e conter o imenso desperdício com a ideia de fechar portas, urgências
claramente úteis social e geograficamente...
Sabes que fecharam o
Serviço de Urgência e o excelente Serviço de Cardiologia do Hospital Curry
Cabral sem sequer prevenirem ou consultarem o seu chefe? Onde irão agora todas
aquelas pessoas tão claramente pobres, vulneráveis e humildes que tantas vezes
lá encontrei e que não pareciam capazes de aprenderem outro caminho, outro
destino, de encontrarem outros dedicados e pacientes "ouvidores"?
Sabes que um ministro
qualquer disse que o edifício da Maternidade Alfredo da Costa não tinha
qualquer interesse urbanístico ou arquitectónico, para além de condenar ao
abate essa unidade de saúde, com limitações já evidentes, mas que tão
importante foi para tanta gente humilde ter os seus filhos em segurança? Será
mesmo que não a poderiam "refundar", como agora se diz? Ou quererão
construir um condomínio fechado, luxuoso e kitsch, no meio de uma das minhas,
das nossas cidades?
Lembras-te de me ires
buscar à MAC quando nasceu o meu Filho e de como te contei da imensa dedicação
do pessoal médico e de enfermagem e da clara sobre-representação de
parturientes de origem social modesta, imigrantes, ciganas, ou simplesmente
pobres?
Sabes que há muita
gente que pensa que a iniciativa privada, incontrolada e à solta, é que vai
salvar Portugal da bancarrota, e que ignora o sentido das palavras
solidariedade, justiça, igualdade, compaixão?
Sabes, Mãe, eu
lembro-me de ver pessoas que partiram de Portugal para o mundo em busca de
trabalho e rendimento a viver em "casas" feitas de bocados de
camioneta, de restos de madeira, de cartão e outros improváveis e etéreos
materiais, emigrantes portugueses que foram parar ao bidonville em St Denis,
nos arredores de Paris, num Inverno em que a temperatura desceu a 20 graus
Celsius abaixo de zero (1970). Nas "paredes", havia toda a sorte de
inscrições contra a guerra colonial e contra o regime que então reinava em
Portugal.
O padre Zé, o nosso
amigo da Mission Catholique Portugaise que me acompanhava e me quis mostrar o
bairro, proibiu-me de falar português e de sair do carro enquanto ali
passávamos... e aqui em Portugal eu vi tanta miséria envergonhada, homens de
chapéu na mão a pedir emprego, mulheres e crianças a pedir esmola, apesar de
todas as leis e medidas que o Estado Novo produziu para as esconder, como já
fizera a Primeira República.
A pobreza e a vadiagem
não se eliminam com Mitras e medidas de segurança, mas com produção e
distribuição de riqueza e de justiça social. Com a promoção da igualdade e da
solidariedade, como manda a Constituição.
E a Saúde, Mãe, que vão
fazer dela? Da saúde dos pobres, dos velhos, das crianças, dos que não têm nem
podem ter seguros de saúde de luxo, porque não têm dinheiro, porque já não têm
idade, ou porque não têm saúde?
E as crianças, Mãe? Vão
de novo morrer antes do tempo porque o parto foi solitário ou mal assistido,
porque a saúde materno-infantil passou a ser de novo um bem reservado a alguns
privilegiados, ou porque a "selecção natural" voltará a equilibrar a
demografia em Portugal, recolhidas as mulheres a suas casas, desempregadas e de
novo domesticadas, e perdida de novo a possibilidade de controlo sobre a sua
própria fertilidade?
O planeamento familiar,
que tu tão bem explicaste que deveria segundo a lei seguir a autonomia que o
Código Civil reconhece na capacidade natural dos adolescentes - tu, católica,
jurista, supostamente conservadora (assim te pensavas, às vezes?)...
Sabes que aqui há
tempos ouvi uma jurista ignorante dizer em público que só aos 18 anos os jovens
poderiam ir sozinhos a uma consulta de planeamento familiar, quando atingissem
a maioridade, sem autorização de pai ou mãe? Ai, minha Mãe, como a ignorância é
perigosa... Será que nos espera um qualquer Ceausescu ou equivalente, dado o
progressivo estrangulamento político e social a que a necessidade económica e a
cegueira política nos estão levando?
Os traços fascizantes
que são visíveis na repressão da liberdade de expressão e de manifestação, em
tudo tão contrários à Constituição da República, serão só impressão de uns
"maníacos de esquerda", como dizem umas pessoas que há tão pouco
tempo garantiam que essa coisa de esquerda e direita era coisa do passado?
Mas as crianças são o
futuro, Mãe, que será deste país sem elas, sem a sua saúde e sem a sua
educação, sem o seu bem-estar, sem a sua alegria? Eu lembro-me tão bem dos
miúdos descalços e ranhosos nas ruas da minha infância... e da luta legal, tão
recente ainda, quem sabe se perdida, contra o trabalho clandestino, ilegal e
infame das crianças a coserem sapatos em casa, a faltarem à escola, a ajudarem
as famílias, ainda há tão pouco tempo, ou dos miuditos com carregos e encargos
maiores que eles, à semelhança das mulheres da carqueja a subirem aquela rampa
infame que Helder Pacheco, o poeta-guia do nosso Porto, tão bem descreve...
"Que quem já é
pecador sofra tormentos, enfim! Mas as crianças, Senhor, porque lhes dais tanta
dor?!... Porque padecem assim?!..."
Mãe, se agora cá
voltasses, ao mundo dos vivos, acho que terias uma desilusão terrível. Melhor
que não vejas o que estão fazendo do nosso pobre país.
Da tua Filha, com muita
saudade,
Maria Teresa"
Ericeira, Portugal,
Europa, dia 31 de Dezembro de 2012
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