Instantâneo de José Falcato Varela
Na Aldeia todos diziam que a velha era doida. E esta afirmação assentava em bases incontestavelmente sólidas. Ninguém o poderia negar. Quem o duvidasse, bastar-lhe-ia fazer-se passar pela porta da sua casa à hora em que o sol punha o oiro da manhã sobre os telhados e lançava o seu bafo morno e confortante sobre os velhinhos que se sentavam na soleira das portas. Lá encontraria, sentada numa cadeirinha baixa, uma velha de preto, pequenina e de lenço na cabeça, sempre à banda. Se atentassem bem, ela lia. Lia e relia cartas com a avidez de uma apaixonada.
Todos os dias a mesma coisa. Pegava na cadeirinha e no volume de cartas atadas com uma tira de pano preto e ia pespegar-se ao sol a ler e a reler.
Não era menos certo que os endiabrados rapazolas da rua tentassem arreliá-la fazendo ir pelos ares o monte de cartas que a velha juntava na covinha do avental.
Nem uma praga, nem um lamento. Com uma santa resignação, levantava-se e com visível dificuldade ia apanhá-las, uma a uma, para logo retomar o lugar e a leitura.
Ora eu um dia, céptico por nascimento, quis certificar-me da loucura da velha e fiz-me passar junto dela. Sim, lá estava. A velha lia e relia o célebre montão de cartas onde a sujidade já punha os seus cambiantes. Porém, algo mais os meus olhos surpresos presenciaram. Enquanto lia, a valha chorava. E um sentimento de ternura estremeceu-me dos pés à cabeça, levando-me a acercar-me dela. A velha, pressentindo a minha presença, levantou para mim uns olhos afogados e ausentes que ficaram presos nos meus. Por fim falou:
- Tal-qual o senhor... Os mesmos olhos, a mesma boca, os mesmos cabelos...
"Não há dúvida", pensei, " a velha está varrida".
Mas logo a seguir continuou:
- O senhor quer vê-lo?
A velha juntou as cartas numa mão, levantou-se e seguiu à minha frente.
- Venha. Faça favor de entrar. Olhe. Ali. Veja bem. O meu neto. Todos os meses me escreve. É só quem tenho no mundo.
E puxando do lencinho amarrotado, foi limpando os olhos e falando com a voz entrecortada de soluços:
- Gostava que o senhor o conhecesse. Não pode haver melhor no mundo. Se ele cá estivesse, não faziam pouco de mim, não... Mas assim... Custa muito, senhor! Eu tive a minha vida. Tive o meu marido e era respeitada. Trabalhei. Mas hoje estou só e pobre. Vivo para o meu neto que está lá longe. Se não fossem as suas cartas!...
Calou-se e continuou a soluçar. E naquele corpinho mirrado e sacudido, os meus olhos viram tão-somente mais uma vítima do mundo idiótico e gélido em que vivemos.
Estremoz, 20-03-1963
Na Aldeia todos diziam que a velha era doida. E esta afirmação assentava em bases incontestavelmente sólidas. Ninguém o poderia negar. Quem o duvidasse, bastar-lhe-ia fazer-se passar pela porta da sua casa à hora em que o sol punha o oiro da manhã sobre os telhados e lançava o seu bafo morno e confortante sobre os velhinhos que se sentavam na soleira das portas. Lá encontraria, sentada numa cadeirinha baixa, uma velha de preto, pequenina e de lenço na cabeça, sempre à banda. Se atentassem bem, ela lia. Lia e relia cartas com a avidez de uma apaixonada.
Todos os dias a mesma coisa. Pegava na cadeirinha e no volume de cartas atadas com uma tira de pano preto e ia pespegar-se ao sol a ler e a reler.
Não era menos certo que os endiabrados rapazolas da rua tentassem arreliá-la fazendo ir pelos ares o monte de cartas que a velha juntava na covinha do avental.
Nem uma praga, nem um lamento. Com uma santa resignação, levantava-se e com visível dificuldade ia apanhá-las, uma a uma, para logo retomar o lugar e a leitura.
Ora eu um dia, céptico por nascimento, quis certificar-me da loucura da velha e fiz-me passar junto dela. Sim, lá estava. A velha lia e relia o célebre montão de cartas onde a sujidade já punha os seus cambiantes. Porém, algo mais os meus olhos surpresos presenciaram. Enquanto lia, a valha chorava. E um sentimento de ternura estremeceu-me dos pés à cabeça, levando-me a acercar-me dela. A velha, pressentindo a minha presença, levantou para mim uns olhos afogados e ausentes que ficaram presos nos meus. Por fim falou:
- Tal-qual o senhor... Os mesmos olhos, a mesma boca, os mesmos cabelos...
"Não há dúvida", pensei, " a velha está varrida".
Mas logo a seguir continuou:
- O senhor quer vê-lo?
A velha juntou as cartas numa mão, levantou-se e seguiu à minha frente.
- Venha. Faça favor de entrar. Olhe. Ali. Veja bem. O meu neto. Todos os meses me escreve. É só quem tenho no mundo.
E puxando do lencinho amarrotado, foi limpando os olhos e falando com a voz entrecortada de soluços:
- Gostava que o senhor o conhecesse. Não pode haver melhor no mundo. Se ele cá estivesse, não faziam pouco de mim, não... Mas assim... Custa muito, senhor! Eu tive a minha vida. Tive o meu marido e era respeitada. Trabalhei. Mas hoje estou só e pobre. Vivo para o meu neto que está lá longe. Se não fossem as suas cartas!...
Calou-se e continuou a soluçar. E naquele corpinho mirrado e sacudido, os meus olhos viram tão-somente mais uma vítima do mundo idiótico e gélido em que vivemos.
Estremoz, 20-03-1963
PUBLICADA POR CRISTINA VARELA
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